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A mancha escravocrata na colheita do café brasileiro

Projeto da Oxfam Brasil, cuja integra consta nesta matéria em arquivo PDF, teve apoio da Agência Sueca de Cooperação para o Desenvolvimento Internacional (SIDA)

Nos últimos anos, a produção de café no Brasil já foi alvo de inúmeros relatórios e denúncias sobre as condições dos trabalhadores assalariados rurais. Informalidade, pobreza e trabalho escravo são alguns dos problemas recorrentes. A Oxfam Brasil volta a analisar, após 16 anos, a situação do café brasileiro, com foco especial em Minas Gerais, o principal produtor do país, com o relatório Mancha de Café.

A entidade diz ter encontrado uma rotina de violações de direitos básicos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais assalariados que atuam nas plantações de café de Minas Gerais, como trabalho análogo à escravidão, baixos salários, desrespeito aos direitos das mulheres e falsas promessas que levam esses trabalhadores a condições de extrema vulnerabilidade. Leia a seguir a íntegra do relatório Mancha de Café, em arquivo PDF:

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O relatório Mancha de Café mostra também a responsabilidade direta de grandes supermercados, cooperativas e outras empresas na situação em que se encontram trabalhadores e trabalhadoras assalariados na cadeia do café, prossegue a Oxfram Brasil.. Com o aumento do poder econômico e a influência nas cadeias de alimentos de grandes supermercados e outras grandes empresas, esses atores precisam fazer uma análise mais profunda da cadeia do café no Brasil e a estabelecerem políticas corporativas e mecanismos que busquem garantir os direitos de trabalhadores rurais ali envolvidos.

Brasil: O legado da escravidão e do café

Nas páginas 7,8 e 9 do documento, a Oxfam Brasil diz quer a formação econômica e social do Brasil está ligada às oligarquias rurais, à produção de café e à escravidão. No Brasil colônia, e após a independência, a produção de cana-de-açúcar e café para exportação eram dois dos principais motores econômicos.  Sua produção estava baseada em grandes propriedades de terra e no uso de mão de obra escrava. Entre 1800 e 1930, ocorreu o grande ciclo do café na história do Brasil.

Neste mesmo período, o país conquistou sua independência (1822), tornando-se uma monarquia, interrompeu o tráfico de africanos escravizados (1850), decretou o fim da escravidão (1888), tornou-se uma república (1889), passou por um golpe (1930) que derrubou a oligarquia do café do controle da sua presidência e venceu um contragolpe das oligarquias do café (1932). A industrialização e modernização do país decolou exatamente com o fim do ciclo do café e a derrubada do poder de suas oligarquias – que seguiram muito fortes, mas sem o controle total do governo federal.

Durante o século XIX e o início do XX, o café era a principal commodity de exportação do país e seus interesses tiveram um papel central no tráfico de africanos escravizados mesmo após o país ter assinado tratados que decretavam seu fim (1815, 1826 e 1831)18 e na demora em abolir a escravidão por completo. O Brasil ainda colônia estava sujeito ao tratado assinado por Portugal e Inglaterra, em 1815, que supostamente abolia o tráfico de africanos escravizados. Depois, em 1826, o Império do Brasil (já independente) assinou um tratado com a Inglaterra também supostamente abolindo o tráfico de africanos escravizados. Em 1831, foi aprovada a lei que criminalizava todos os envolvidos com o tráfico de africanos escravizados e libertava todos os africanos sequestrados e trazidos ao país nesta condição. Porém, até 1850 (quando da promulgação da Lei Eusébio de Queirós), o tráfico clandestino de africanos escravizados continuou intenso. Milhares de africanos foram sequestrados e trazidos ao Brasil de maneira ilegal, mesmo à luz do regime escravocrata do Império.

O período de 1800 até 1850 foi marcado pelo aumento do tráfico de africanos escravizados, com o início e a consolidação do ciclo do café no país. A chegada de um grande influxo de africanos escravizados no Brasil, na primeira metade do século XIX, provocou um grande aumento na produção agrícola no país. Foi neste período, impulsionado pela escravidão e ajudado pelo colapso ou mudanças políticas nos países concorrentes, que o Brasil conquistou a primeira posição de produtor de café no Novo Mundo.

O trabalho escravo ainda é encontrado em grandes fazendas de grandes latifundiários e empresas do agronegócio | Foto: Reprodução

Café foi força motriz da escravidão

O café foi a força motriz por trás do espantoso crescimento da população escrava do Brasil no século XIX, e cidadãos americanos constituíram um dos principais motores a conduzir africanos através do Atlântico. À medida em que os paladares refinados da Europa e dos Estados Unidos se habituavam ao sabor dessa bebida, a demanda por escravos crescia, particularmente entre os cafeicultores do Vale do Paraíba”.A força da escravidão na história do país está ligada ao desenvolvimento da economia do café, no Brasil e no mundo. O país foi o último no mundo a abolir a escravidão, após 388 anos do início da abolição mundial.

A história da relação entre o café e a escravidão no país tem influência direta para o Brasil contemporâneo. Conforme coloca Silvio Almeida, o racismo hoje é resultado de um processo histórico e político, do legado de tradições que foram construídas na própria estrutura social. O racismo estrutural demanda “mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas” (ALMEIDA, 2019)21. Ao analisarmos as desigualdades atuais, é importante que façamos uma reflexão sobre como elas foram criadas e reproduzidas. Não parece ser acidente ou coincidência o papel que os trabalhadores rurais, e, neste caso, os trabalhadores rurais do café, ocupam na sociedade e a sua posição de vulnerabilidade social.

O trabalho análogo à escravidão ainda ocorre nas fazendas de café brasileiras, segundo dados do Ministério Público do Trabalho

Maioria dos trabalhadores ainda são negros

A viabilidade da reprodução sistêmica de práticas racistas está na organização política, econômica e jurídica da sociedade. O racismo se expressa concretamente como desigualdade política, econômica e jurídica. (…) o racismo, como processo histórico e político, cria as condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática”

Portanto, ao olhar a atual situação dos trabalhadores rurais no Brasil (e os trabalhadores rurais do café em Minas Gerais) é importante considerar as raízes da situação atual. Não é coincidência que o trabalho rural contemporâneo conviva com uma pobreza sistêmica e violações de direitos humanos, e que a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras rurais sejam pessoas negras.