O jurista Lenio Luiz Streck, em artigo publicado originalmente no portal Conjur e, em seguida, no Diário do Centro do Mundo (DCM) debate a prisão em flagrante do deputado federal bolsonarista Daniel Silveira, após ameaças físicas contra os ministros do STF. Streck é conhecido por seus trabalhos voltados à filosofia do direito e à hermenêutica jurídica. Ele é professor dos cursos de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, atua como advogado e é procurador de Justiça aposentado, tendo sido membro do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul de 1986 a 2014. Leia a seguir a íntegra do seu artigo:
Por Lenio Luiz Streck
O Supremo Tribunal Federal referendou unanimemente a prisão do deputado Daniel Silveira. Escrevi aqui no dia do julgamento — na verdade, horas antes — acerca das especificidades do caso, deixando registrada a minha posição de que desde os anos 90 sustento a não recepção da Lei de Segurança Nacional. Todavia, o STF a considera recepcionada e é com isso que temos de lidar.
Agora a bola está com a Câmara dos Deputados. Diz o deputado preso que estava sob o manto protetor da imunidade. Só que, em primeiro lugar, a finalidade da imunidade é proteger a democracia e não a de servir de escudo para destruí-la. Simples assim. E esse é mais um episódio, entre os tantos vários dos últimos tempos, de algo legítimo sendo usado para defender o seu contrário. Aqui, é a imunidade contrariando sua própria razão de existência.
O deputado, entre outras coisas como ofender os ministros, defendeu o fechamento do Supremo Tribunal Federal. E mais não precisa ser dito.
Além de resolver a questão da prisão do deputado, a Câmara terá que julgar a quebra de decoro do parlamentar, esculpida em carrara.
No mais, independentemente de a Câmara manter ou não a prisão, parece claro que o Brasil, como democracia, deve dizer o que quer. Somos instados, todo o tempo, a dizer aquilo que somos e aquilo que queremos, aquilo que concebemos como legítimo.
De novo e sempre: a democracia permite que se conspire abertamente contra ela, em seu nome?
Voltemos à imunidade. O Supremo Tribunal já disse que a inviolabilidade material somente abarca as declarações que apresentem nexo direto e evidente com o exercício das funções parlamentares. O Parlamento é o local por excelência para o livre mercado de ideias — não para o livre mercado de ofensas. Ninguém pode se escudar na inviolabilidade parlamentar para, sem vinculação com a função, agredir a dignidade alheia ou difundir discursos de ódio, violência e discriminação (Pet 7.174, rel. p/ o ac. min. Marco Aurélio, j. 10-3-2020, 1ª T, Informativo 969).
No limite, o que se coloca é mesmo isso: o que nós aceitamos como legítimo numa República que merece o nome de república?
Vamos aceitar que a liberdade de expressão e a democracia, coisas que nos são tão caras e pelas quais tanto lutamos, sejam utilizadas para o cometimento de crimes que, ao fim e ao cabo, são exatamente os crimes que colocam fim na liberdade de expressão e na democracia?
É disso que se trata.