A gripe espanhola é considerada uma das pandemias mais devastadoras e letais da história. A doença alastrou-se por todas as regiões do mundo e deixou o maior número de infectados e mortos, se comparada com outras pandemias. Alguns estudiosos estimam que aproximadamente 50 milhões de pessoas morreram e pelo menos 600 milhões de pessoas teriam adoecido entre os anos de 1918 e 1919.
No Brasil, a doença chegou em setembro de 1918 e se espalhou por todo o país, causando a morte de 35 mil brasileiros, segundo estimativas. No Espírito Santo, a situação não foi diferente. O povo capixaba sofreu com a pandemia, uma vez que não havia medicamentos que a combatesse.
Para entender melhor o contexto epidemiológico da doença e analisar como a epidemia foi conduzida por profissionais de saúde, autoridades e população no estado, a médica pneumologista Maria Cristina Paiva realizou um estudo investigativo sobre a gripe espanhola em solo capixaba de setembro de 1918 a março de 1919.
A investigação científica é o resultado da pesquisa de doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da Ufes. Com o título “O flagelo da gripe espanhola no Espírito Santo”: da negação à convicção de sua presença letal (1918-1919), a pesquisadora analisou a chegada da doença no estado e sua relação com os aspectos políticos e socioeconômicos, e realizou um registro sobre o serviço sanitário capixaba entre 1908 e 1918.
A pesquisa representa um trabalho inédito sobre a pandemia da gripe espanhola no Espírito Santo, significando um enorme desafio, devido à falta de documentos oficiais e arquivos de jornais sobre o tema.
“No Espírito Santo, o assunto gripe espanhola ainda não tinha sido abordado no âmbito acadêmico. Recuperar a história da doença no estado representou um grande desafio, principalmente por falta de documentos oficiais e arquivos de jornais. Com isso, encontrei algumas dificuldades. A primeira foi pela pobreza de documentos oficiais encontrados”, afirma Paiva.
Durante o trabalho, ela constatou que esse período da história do Espírito Santo foi negligenciado na conservação de documentos pelos governos e até por particulares, como foi o caso da Santa Casa de Misericórdia de Vitória e do jornal O Diário da Manhã. “Na Santa Casa, toda a documentação da época queimou numa pilha de papéis na década de 1970. Em relação ao Diário da Manhã, único periódico de Vitória no tempo da pandemia, não encontramos exemplares do ano de 1918, nem sobre o que teria acontecido com eles. Certamente, a pesquisa seria enormemente engrandecida com as edições diárias do jornal referente ao ano de 1918”, explica a médica.
Outro obstáculo foi encontrar pessoas que se lembrassem da gripe, em virtude do tempo decorrido entre a pandemia e a pesquisa. “Foi mais um desafio, mas tivemos a sorte de encontrar ainda viva e com memória intacta sobre a doença, da qual foi acometida em 1918, a senhora Leopoldina, de 105 anos, vivendo num asilo em Vitória. Assim, algumas memórias sobre a gripe foram recuperadas. Isso ajudou um pouco”, completa a pesquisadora.
Análise das epidemias
Além de recuperar a história da pandemia no estado, Paiva analisou as epidemias e pandemias na história e as dimensões da gripe espanhola no mundo de 1918 a 1919. “Para o desenvolvimento do trabalho, foi importante o estudo do comportamento clássico das epidemias e pandemias no curso da história, como aconteceram e qual a reação das populações, assim como das epidemias de gripe já estudadas, como surgem, desenvolvem-se e cessam”, explica.
A professora enfatiza ainda que, apesar de alguns considerarem que o Brasil estava protegido pelo oceano Atlântico, o país sofreu com a chegada da epidemia, principalmente na capital, na época o Rio de Janeiro, e que os primeiros momentos da doença no Espírito Santo começaram por Vitória, onde desembarcou no final de setembro de 1918.
Logo em seguida, a gripe se espalhou pelos municípios do estado. Segundo fontes oficiais da época, as terras capixabas foram acometidas com o adoecimento de cerca de 70% da população, com uma mortalidade em 0,8%.
Entretanto, Paiva afirma que quase todas as comunicações sobre a gripe nos municípios enfatizaram que aquela era uma doença benigna e que as mortes não seriam por causa da gripe, mas por serem corpos adoecidos por doenças anteriores, por alcoolismo ou por serem indigentes, ou seja, o negacionismo.
Outro aspecto abordado no estudo foi a dimensão da gripe espanhola no mundo e no Brasil, com médicos atônitos, sem saber ao certo o que estava acontecendo. “Apesar da confusão nos diagnósticos, visto nos atestados de óbito, onde um mesmo médico dava vários nomes à mesma mazela não sabendo ao certo de que doença se tratava, isso não foi impedimento para indicação de várias medidas de prevenção e de tratamento, ainda que algumas deles fossem ineficazes para a gripe, como a vacinação e purgativos”.
Conclusões
A tese concluiu que a epidemia da gripe espanhola no Espírito Santo promoveu as desordens características de uma epidemia, com isolamentos; paralisação de serviços, comércios, escolas e clubes; escassez e carestia de alimentos; negação inicial da gravidade da moléstia e mortes; e mobilização de diversos setores da sociedade civil e religiosa, além do poder público, para o seu controle. Entretanto, a pesquisadora afirma que a história da pandemia no Espírito Santo não está totalmente registrada, faltando ainda muitas páginas a serem escritas, principalmente para saber o que aconteceu verdadeiramente nos principais municípios e uma estatística mais próxima da realidade sobre a mortalidade pelo interior e até mesmo na capital.
A tese O flagelo da gripe espanhola no Espírito Santo: da negação à convicção de sua presença letal (1918-1919) teve a orientação do professor Sebastião Pimentel. A banca examinadora foi composta pelos professores Margareth Maria Dalcolmo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); André Luiz Nogueira, da Faculdade do Vale do Cricaré (FVC); Sônia Maria Barreto e Maria Cristina Dadalto, ambas da Ufes.
A gripe
A gripe espanhola foi uma pandemia que aconteceu entre 1918 e 1919, atingindo todos os continentes. Não se sabe a origem da doença nem o local onde ela teve início, mas se acredita que ela seja uma mutação do vírus Influenza que surgiu no interior dos Estados Unidos ou foi gerada pela queda dos padrões sanitários e pelos efeitos da escassez alimentar decorrentes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
A gripe espanhola teve um grande impacto nos países que lutavam na Primeira Guerra Mundial. Por conta desse conflito, era necessário que as informações da doença fossem escondidas, de forma a não prejudicar o moral dos soldados, não criar pânico na população e nem passar imagem de fraqueza para o adversário.
Assim, as notícias dessa gripe letal eram censuradas em grande parte dos países europeus. A Espanha, no entanto, não participava da guerra, e sua imprensa tinha liberdade para falar da doença. Isso fez com que a cobertura espanhola ficasse conhecida no mundo, e a pandemia passou a ser nomeada como “gripe espanhola”.