Em carta à Unesco, presidente propõe diretrizes globais para o setor. A Unesco encerra nesta quinta-feira (23), na sua sede, em Paris, o evento “Internet for Trust”, onde reúne mais de 3 mil participantes. O encontro visa encontrar uma abordagem consistente na internet, baseada nos padrões internacionais de direitos humanos
Em carta enviada à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, na sigla em inglês), nesta última quarta-feira (22), o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva defendeu a regulação das redes sociais para evitar que a democracia seja ameaçada por plataformas on-line. “Não podemos permitir que a integridade de nossas democracias seja afetada por decisões de alguns poucos atores que controlam as plataformas digitais”, diz a carta destinada à diretora-geral Audrey Azoulay e lida pelo secretário de Políticas Digitais da Secom, João Brant, no fórum global “Internet for Trust”, em Paris.
Segundo o presidente, essa deve ser uma das prioridades da agenda global. O texto também pleiteia uma legislação que corrija as distorções de um modelo de negócios “que gera lucros com a exploração dos dados pessoais dos usuários”. Lula disse também que é preciso combater a concentração do mercado digital com a democratização da internet e a promoção da autonomia dos países em desenvolvimento nessa área.
Leia a íntegra da carta enviada por Lula:
À Sua Excelência a Senhora
Audrey Azoulay
Diretora-Geral da UNESCO
Senhora Diretora-Geral,
Gostaria de agradecê-la pelo convite para participar da Conferência Global da UNESCO que será realizada em Paris entre os dias 22 e 23 de fevereiro de 2023.
As plataformas digitais, em suas diferentes modalidades, são parte fundamental de nosso dia-a-dia. Elas definem a maneira como nos comunicamos, como nos relacionamos e como consumimos produtos e serviços. O desenvolvimento da internet trouxe resultados extraordinários para a economia global e para nossas sociedades. As plataformas ajudam a promover e difundir o conhecimento. Facilitam o comércio. Aumentam a produtividade. Ampliam a oferta de serviços e a circulação de informações.
Esses benefícios, no entanto, estão distribuídos de maneira desproporcional entre as pessoas de diferentes níveis de renda, ampliando a desigualdade social. O ambiente digital acarretou a concentração de mercado e de poder nas mãos de poucas empresas e países. Trouxe, também, riscos à democracia. Riscos à convivência civilizada entre as pessoas. Riscos à saúde pública. A disseminação de desinformação durante a pandemia contribuiu para milhares de mortes. Os discursos de ódio fazem vítimas todos os dias. E os mais atingidos são os setores mais vulneráveis de nossas sociedades.
O mundo todo testemunhou o ataque de extremistas às sedes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do Brasil no último 8 de janeiro. Ao fim do dia, a democracia brasileira venceu e saiu ainda mais forte. Mas nunca deixaremos de nos indignar com as cenas de barbárie daquele domingo.
O que ocorreu naquele dia foi o ápice de uma campanha, iniciada muito antes, que usava, como munição, a mentira e a desinformação. E tinha, como alvos, a democracia e a credibilidade das instituições brasileiras. Em grande medida, essa campanha foi gestada, organizada e difundida por meio das diversas plataformas digitais e aplicativos de mensagens. Repetiu o mesmo método que já tinha gerado atos de violência em outros lugares do mundo. Isso tem que parar.
A comunidade internacional precisa, desde já, trabalhar para dar respostas efetivas a essa questão desafiadora de nosso tempo. Precisamos de equilíbrio. De um lado, é necessário garantir o exercício da liberdade de expressão individual, que é um direito humano fundamental. De outro lado, precisamos assegurar um direito coletivo: o direito de a sociedade receber informações confiáveis, e não a mentira e a desinformação.
Também não podemos permitir que a integridade de nossas democracias seja afetada pelas decisões de alguns poucos atores que hoje controlam as plataformas. A regulação deverá garantir o exercício de direitos individuais e coletivos. Deverá corrigir as distorções de um modelo de negócios que gera lucros explorando os dados pessoais dos usuários. Para ser eficiente, a regulação das plataformas deve ser elaborada com transparência e muita participação social. E no plano internacional deve ser coordenada multilateralmente. O processo lançado na UNESCO, tenho certeza, servirá para construção de um diálogo plural e transparente. Um processo que envolva governos, especialistas e sociedade civil.
Ao mesmo tempo, devemos trabalhar para reduzir o fosso digital e promover a autonomia dos países em desenvolvimento nessa área. Precisamos garantir o acesso à internet para todos, fomentar a educação e as habilidades necessárias para uma inserção ativa e consciente de nossos cidadãos no mundo digital. Países em desenvolvimento devem ser capazes de atuar de forma soberana na moderna economia de dados, como agentes e não apenas como exportadores de dados ou consumidores passivos dos conteúdos.
Esta conferência na UNESCO é o início de nosso debate, e não seu ponto final. Estou certo de que o Brasil poderá contribuir de forma significativa para a construção de um ambiente digital mais justo e equilibrado, baseado em estruturas de governança transparentes e democráticas.
Aproveito a oportunidade para apresentar os votos de minha mais alta estima e consideração.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Presidente da República Federativa do Brasil
Internet X desinformação
Durante a abertura, a diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay, lembrou os benefícios trazidos pela internet na comunicação mas destacou a ameaça que a desinformação e as teorias da conspiração têm representado para as democracias no mundo como consequência do modelo econômico de plataformas, que ampliam o alcance de determinados conteúdos.
“Um modelo que, a fim de aumentar a audiência e sua monetização […] privilegia a emoção sobre a reflexão, privilegia a busca pela briga frente a verdade”, afirmou Azoulay. Até esta quinta-feira, mais de quatro mil participantes vão discutir que tipo de regulamentação pode ser aplicada às redes sociais para proteger a democracia, os direitos humanos sem afetar a liberdade de expressão dos cidadãos.
Entre os convidados brasileiros, três nomes que sofreram fortemente nos últimos anos com campanhas de ódio, desinformação e assassinato de reputação: o influenciador digital Felipe Neto, a jornalista Patrícia Campos Mello e o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso. A delegação que representa o governo brasileiro é liderada pelo secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação, João Brant. O debate sobre o controle das redes sociais e a responsabilização sobre desinformação é uma das pautas essenciais de sua pasta.
Durante a conferência, será discutido um esboço de recomendações globais para o ambiente digital. O documento em discussão aponta, entre outras coisas, a necessidade de transparência sobre a moderação de conteúdos em plataformas como o Youtube e o Facebook, além de responsabilização sobre a manutenção de mensagens contra os direitos humanos ou a democracia. A Unesco espera lançar ainda neste primeiro semestre um documento final com recomendações de controle das redes sociais. Elas serão usadas por governos, órgãos regulatórios e judiciais, sociedade civil, mídia e empresas digitais para ajudar a melhorar a confiabilidade das informações online, promovendo a liberdade de expressão e os direitos humanos.
Desinformação, discurso de ódio e teorias da conspiração
De acordo com a Unesco, embora tenham revolucionado as comunicações e a difusão do conhecimento, as redes sociais hoje também são responsáveis pela disseminação de desinformação, discurso de ódio e teorias da conspiração.
A agência afirma que muitos países ao redor do mundo criaram leis ou estão atualmente considerando a legislação nacional para abordar a propagação de conteúdo nocivo. Mas parte dessa legislação corre o risco de violar os direitos humanos de suas populações, como o direito à liberdade de expressão e opinião.
Também existem amplas disparidades na distribuição de recursos de moderação entre regiões e idiomas. Para a Unesco, é urgentemente necessária uma abordagem consistente em todo o mundo, fundada nos padrões internacionais de direitos humanos.
‘Regulamentação não é censura’, diz Felipe Neto
Atacado nas redes sociais por defender a regulamentação das redes sociais, o influenciador digital Felipe Neto afirma que é preciso um trabalho de esclarecimento ao público sobre o significado e a importância desse tipo de norma. “A extrema direita está tentando criar um tom pejorativo para o termo regulamentação. Eles acham que regulamentar significa proibir, significa censurar. Não é nada disso. A Constituição é uma espécie de regulamentação. Você cria uma série de regras que vão ter suas responsabilidades, seus direitos, seus deveres.”
“Quem vai ditar o que é certo e errado, que é uma grande pergunta que é feita por aí, não funciona dessa forma. O que a gente precisa é de debate. Alguém em algum momento criou as regras que compõem hoje o Código Penal e , com certeza, teve alguém na época quando aquilo era elaborado que dizia: ‘quem vai dizer o que é crime e o que não é? Da mesma forma, nós temos agora que debater, conversar e através do diálogo, através da moderação, conseguiremos chegar a essas respostas”, complementa Felipe Neto.