Conforme descreveu Darcy Ribeiro, em “O povo brasileiro” (1995), a nossa formação econômica esteve associada aos “moinhos de gastar gente”.
Reprodução/Rodrigo Medeiros/Jornal GGN
Chamou a nossa atenção o recente debate sobre a economia capixaba deflagrado pelo jornalista Luís Nassif, em artigo sobre a tragédia da indústria no Espírito Santo, publicado no dia 11 de fevereiro [1]. Outros artigos se somaram à necessária discussão qualificada. Faremos alguns breves comentários sobre o assunto, amparando-nos em algumas referências. Afinal, o fato de haver políticas sob a responsabilidade federal não significa a desresponsabilização dos governos subnacionais.
A discussão sobre a baixa complexidade econômica da estrutura produtiva capixaba, que está associada ao baixo grau de sofisticação tecnológica do que é exportado pelo Espírito Santo, está presente em território capixaba. Destacamos o artigo de Antônio Carlos Medeiros, cujo título é “Os rumos da economia capixaba estão na berlinda”, publicado na Gazeta, em 25 de fevereiro [3]. O professor Orlando Caliman abordou o assunto em “A armadilha da baixa complexidade da economia no ES” [4]. Guilherme Lacerda e Guilherme Pereira também contribuíram com o debate [5].
Não convém esquecermos que vivemos em um contexto histórico e político no qual o mercado de crédito dificilmente poderia funcionar bem com uma taxa básica de juros de 13,75% ao ano. A cultura de juros cronicamente elevados afeta os investimentos produtivos e tem a sua parcela de responsabilidade no fato de que quase 80% das famílias brasileiras terem chegado ao final de 2022 endividadas, com aproximadamente 30% inadimplentes [6]. Ademais, o conjunto das economias dos países do G20, que inclui as dezenove maiores economias e a União Europeia, está em processo de desaceleração, de acordo com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Estamos com uma recessão contratada para o curto prazo no Brasil, com a perspectiva de uma onda de falências após o escândalo das Lojas Americanas? Como pretendemos responder coletivamente de forma organizada e planejada?
Acreditamos que existem boas reflexões disponíveis. Em artigo publicado no âmbito do Observatório do Desenvolvimento Capixaba (ODC), por exemplo, os pesquisadores Ednilson Felipe e Érika Leal trouxeram reflexões relevantes para pensarmos novos rumos no Espírito Santo [7]. Segundo os autores, “as últimas décadas deixam evidente que a economia do Espírito Santo enfrenta desafios semelhantes à economia nacional, tanto em termos da dificuldade de superar baixas taxas de crescimento quanto em termos dos desafios de diminuição da pobreza e da pobreza extrema”. Desigualdades sociais extremas encontram-se expostas pelo IBGE, na Síntese de Indicadores Sociais.
Ednilson Felipe e Érika Leal trouxeram um diagnóstico resumido e qualificado da economia capixaba: a) a rigidez da estrutura produtiva capixaba leva à dependência de poucos setores como determinantes da dinâmica da economia; b) há a necessidade de elevação gradual da sua complexidade econômica produtiva e exportadora; c) o Espírito Santo ainda precisa estabelecer consensos para nortear um novo ciclo de desenvolvimento, para além da comparação da sua taxa de crescimento com a taxa nacional.
Os pesquisadores destacaram ainda que: d) há espaço fiscal para o uso do poder de compra do governo estadual para a dinamização da economia, gerando novas oportunidades de emprego e renda para a população mais vulnerável; e) políticas de ampliação da renda, de erradicação da pobreza e da extrema pobreza passam, também, pela melhoria da infraestrutura em todas as microrregiões capixabas; f) os investimentos produtivos são relativamente baixos no Espírito Santo, apesar dos incentivos fiscais e da nota A em gestão fiscal estadual.
Um artigo acadêmico publicado por nós, com outros colegas, em 2020, de título “Complexidade econômica e os desafios pós-pandêmicos para o Brasil”, com ênfase no que seria um novo olhar para o caso capixaba, está disponível no site da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas [8]. Em síntese, “no Brasil, o processo de desindustrialização precoce colocou o país em uma faixa perigosa de dependência da exportação de produtos básicos e semimanufaturados”.
Entre 1930 e 1980, principalmente após os efeitos globais da grise de 1929, o Brasil fez esforços e diversificou a sua economia, com Getúlio Vargas, contra Vargas e sem Vargas. A industrialização substitutiva de importações ajudou a construir uma classe média e a urbanizar aceleradamente o Brasil. O Espírito Santo foi retardatário no processo. Esse processo, por sua vez, carregou endogenamente as suas fragilidades ao longo do tempo, conforme destacou a economista Monica de Bolle [9]. O capital privado nacional se mostrou a perna fraca do tripé desenvolvimentista e o modelo do capitalismo associado-dependente se consolidou como a regra geral no campo industrial. Problemas sociais e ambientais acumulados são bem conhecidos no presente.
Desde meados da década de 1980, o processo de desindustrialização prematura se intensificou, refletindo a perda relativa de dinamismo da economia brasileira. Paralelamente, o crescimento do setor terciário não foi acompanhado por ganhos de produtividade na economia e a informalidade costuma ser a dura realidade para aproximadamente 40% dos trabalhadores ocupados, mesmo após a reforma trabalhista. Do ponto de vista da balança comercial, a tradição primário-exportadora se destacou. Esses setores produtores de itens básicos ou semimanufaturados empregam relativamente pouca gente e costumam ser intensivos em capital, repercutindo na distribuição da renda em desfavor do trabalho.
Quanto menos desenvolvido for um país, maior a sua dependência da exportação de produtos tomadores de preços nos mercados globais. Essa dependência, por sua vez, está correlacionada com desigualdades sociais extremas dentro desses países. Há, portanto, restrições estruturais nesse tipo de dependência para a redução das desigualdades sociais extremas nas unidades federativas. Quando as políticas públicas, nacionais e subnacionais, reforçam cronicamente essas desigualdades, que são de caráter estrutural, dificilmente poderemos esperar por resultados diferentes.
Destacamos que é preciso atentar para o risco e as consequências de que as cadeias globais de valor funcionem apenas no sentido de que os países desenvolvidos fiquem com os postos de trabalhos mais qualificados, com as melhores remunerações, e que os países não desenvolvidos se especializem nas atividades de baixas possibilidades inovativas e de produtividade intrínseca. Uma estrutura produtiva mais sofisticada demanda trabalhadores mais qualificados, ajudando a promover a redução de desigualdades pela distribuição funcional da renda.
Recomendamos então ações no sentido de elevação da sofisticação produtiva capixaba, as revisões dos planos de desenvolvimento e da lógica ainda vigente dos incentivos fiscais, além da democratização das discussões e decisões. Indicamos a estratégia do caminho gradualista, que compreende que os governos devem investir em infraestrutura e buscar fortalecer as instituições voltadas para o desenvolvimento econômico e social, com preocupações ambientais. Afinal, as qualidades da infraestrutura, das instituições e da intervenção política são relevantes na articulação de políticas de desenvolvimento regional.
Precisamos superar coletivamente a trágica normalidade nacional. A nona edição do “Boletim Desigualdade nas Metrópoles”, documento produzido em parceria pelo Observatório das Metrópoles, pela PUC do Rio Grande do Sul e a Rede de Observatórios da Dívida Social na América Latina (RedODSAL), mostrou que mais de 19 milhões de pessoas estavam em condição de pobreza e mais de 5 milhões estavam abaixo da linha de extrema pobreza nas regiões metropolitanas brasileiras entre 2019 e 2021. Na Grande Vitória, no Espírito Santo, 25% das pessoas estavam na pobreza e 7% na extrema pobreza.
Quase 40% da população brasileira, mais de 80 milhões de pessoas, vivem em alguma das nossas regiões metropolitanas. Conforme reconheceu o documento, essas regiões “vêm enfrentando enormes desafios, como a questão da violência urbana, das condições de moradia, do acesso e qualidade dos serviços públicos e, de um modo geral, das barreiras para o exercício pleno da cidadania por parcela considerável de seus habitantes”. Nesse sentido, a matéria assinada por Cássia Almeida e que foi publicada no jornal O Globo, no dia 19 de junho de 2022, “O preço do retrocesso”, merece ser recordada. Segundo apontou a jornalista, “o Brasil voltou ao passado na economia, no bem-estar da população, na educação e no meio ambiente, exibindo indicadores que remontam há até 30 anos”.
Modernizações conservadoras ocorreram ao longo do século XX entre nós e as estruturas tradicionais de poder permaneceram praticamente intactas nas unidades federativas. Quase quatro séculos de escravidão deixaram marcas profundas na sociabilidade brasileira. Conforme descreveu Darcy Ribeiro, em “O povo brasileiro” (1995), a nossa formação econômica esteve associada aos “moinhos de gastar gente”. A exploração predatória da natureza também integrou esse processo histórico. Desejamos realmente modificar essa trágica normalidade nacional e como as unidades federativas podem ajudar nessa mudança estrutural?
Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria são professores do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)