Pastor evangélico terá de pagar R$ 100 mil por ligar religiões africanas a satanismo
A Vara Criminal da Comarca de Igarassu condenou, no dia 11 de setembro, o pastor Aijalon Heleno Berto Florêncio ao pagamento de R$ 100 mil, a título de dano moral coletivo, por ter feito discurso de ódio em rede social contra as religiões de matrizes africanas. A sentença, prolatada pela juíza de Direito Ana Cecília Toscano Vieira Pinto, também condenou o pastor à pena de 2 anos e 6 meses de reclusão em regime aberto e ao pagamento de 100 dias-multa, cada um equivalente a 1/30 do salário mínimo vigente à época do fato, o dia 24 de julho de 2021. O valor de R$ 100 mil será destinado para ações de enfrentamento da intolerância contra as religiões afro-brasileiras, por meio de projetos a serem selecionados pelo Conselho Estadual da Promoção de Igualdade Racial de Pernambuco – COEPIR/PE. A defesa do pastor ainda pode recorrer da decisão.
Na denúncia oferecida pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE), o pastor foi acusado de ter promovido e incitado preconceito contra as religiões de matrizes africanas com a publicação de vídeos no próprio perfil do réu (@pr_aijalonhberto) na rede social Instagram, quando proferiu discursos de ódio, associando as religiões afro-brasileiras, seus sacerdotes e fiéis às seguintes expressões: demónios, feitiçaria, répteis, animais abomináveis, demoníacos, malignos, satânicos, nefastos que pretendem escravizar, aprisionar e inebriar vidas.
Durante a instrução do processo, a defesa do acusado sustentou que o discurso do pastor estava amparado pelo direito à liberdade de expressão, garantido pela Constituição Federal de 1988, e representava apenas um legítimo exercício do proselitismo religioso. O réu, ainda, negou qualquer intuito discriminatório em sua fala, sustentando que os termos ali empregados são extraídos de seu arcabouço de fé e da própria literatura que versa sobre as religiões de matriz africana.
A tese da defesa foi refutada na sentença, porque a liberdade de expressão não pode ir de encontro ao direito de credo, também previsto na Constituição Federal de 1988. “O proselitismo religioso, entendido como o discurso confessional que objetiva propagar determinado credo e, com isso, obter a adesão de novas pessoas, é garantido pela Constituição Federal de 1988, a partir, notadamente, das liberdades religiosa e de expressão ali consagradas. De tal sorte, se de um lado a Carta Magna assegura a liberdade de fé do acusado, de outro norte também é garantido o direito de credo de todos aqueles que professam fés diversas, incluindo, por óbvio, as religiões de matriz africana. Outrossim, como todo direito fundamental, as liberdades de credo e de expressão que amparam o proselitismo ou catequese religiosa não constituem direitos absolutos, encontrando limites, sobretudo, na proteção da dignidade da pessoa humana, que é violada quando da prática de discursos de ódio”, escreveu a juíza Ana Cecília Toscano Vieira Pinto.
A magistrada também enfatizou que as provas nos autos mostraram que, além de praticar o preconceito de forma direta, o réu ainda incitou a prática de preconceito religioso entre terceiros. “No presente caso, o acusado, no discurso veiculado por meio de vídeo publicado em conta pessoal na rede social denominada ‘Instagram’, em 24.07.2021, excedeu os limites da liberdade de expressão, de forma que sua fala não encontra guarida no direito constitucional ao proselitismo religioso. Trata-se, em verdade, como sobejamente demonstrado nos autos, de um discurso de ódio contra as religiões de matriz africana e seus praticantes, calcado fundamentalmente no preconceito aos deuses, símbolos e práticas dessas crenças. O discurso de ódio propagado pelo acusado possui ainda o condão de incitar os adeptos de sua igreja ou credo, bem como aqueles de ideologias semelhantes, a discriminar as religiões de matriz africana, a exemplo do candomblé, e seus integrantes. Com efeito, sob o pretexto de discorrer acerca dos painéis pintados no Túnel da Abolição, o réu se utiliza de expressões ofensivas e degradantes contra as religiões de matriz africana e seus praticantes”.
Trechos do embasamento da sentença
“O discurso de ódio propagado pelo acusado possui ainda o condão de incitar os adeptos de sua igreja ou credo, bem como aqueles de ideologias semelhantes, a discriminar as religiões de matriz africana, a exemplo do candomblé, e seus integrantes. Com efeito, sob o pretexto de discorrer acerca dos painéis pintados no Túnel da Abolição, o réu se utiliza de expressões ofensivas e degradantes contra as religiões de matriz africana e seus praticantes.”
“Afirmou o acusado que os painéis consistem numa “reverência a entidades malignas, satânicas, espíritos das trevas”, dizendo, ainda: “é culto a demônios, é culto satânico”. Em seu discurso, o acusado afirma ainda: “quero denunciar que as pinturas grafitadas no Túnel da Abolição não são apenas gravuras, são pontos de contato com poderes dantescos, com poderes demoníacos”. Ao se referir às religiões de origem africana, o réu declarou, noutro trecho de seu discurso, tratar-se de “espíritos do animismo da cultura afro que migrou para o Brasil e que hoje tem encontrado muitos adeptos, estão presos hoje à feitiçaria”, que se prestam, segundo ele, “para escravizar, aprisionar, inebriar vidas e cidades”.
“Com efeito, em audiência de instrução e julgamento, foram ouvidas testemunhas arroladas pelo Ministério Público que confirmaram os fatos imputados ao acusado. Destarte, ouvida perante este juízo, ELZA MARIA TORRES DA SILVA afirmou, em síntese, que o discurso do acusado, ao dizer que a religião candomblé é demoníaca, desencadeia ameaças, declarando, inclusive, ter sido ela mesma ameaçada de morte.”
“A testemunha afirmou ter sido necessário o apoio da polícia para que a organização denominada Rede de Articulação da Caminhada dos Terreiros de Pernambuco pudesse ir às ruas protestar, esclarecendo que o número de participantes reduziu porque as pessoas se sentiram ameaçadas. Perguntada se depois da veiculação do vídeo pelo réu as ameaças à comunidade religiosa de matriz africana aumentaram, a depoente respondeu que sim. Por sua vez, a testemunha IVALDO FERREIRA DA SILVA, também ouvida em juízo, declarou que os integrantes do candomblé já são muito discriminados e que as falas do acusado causaram repercussão negativa em suas vidas.”
“Perguntado se se sentiu ameaçado ou ofendido em razão do fato praticado pelo réu, o depoente respondeu que sim, e que teve medo de que pessoas fossem ao seu terreiro a fim de praticar algo ruim contra ele. Perguntado, ainda, se durante a sua trajetória religiosa o fato praticado nestes autos foi o mais grave ou se consistiu em apenas mais uma agressão, respondeu que o fato praticado pelo acusado foi o mais grave de que se recorda, afirmando, também, que, após o vídeo veiculado pelo acusado, passou a ter medo ao praticar sua religião e confirmou que a perseguição contra as religiões de matriz africana se intensificou.”
“Também ouvida em juízo, a testemunha EDSON JOÃO DA SILVA afirmou que o réu externou mensagens de ódio e preconceito contra o seu credo, ao ter dito que as entidades da sua religião são demoníacas. Disse o depoente que as falas do acusado, afirmando que os adeptos de sua religião são seguidores do demônio, o deixaram com medo. Perguntado se depois do vídeo veiculado pelo acusado passou a se sentir mais ameaçado e com medo de ir à rua, respondeu que sim. Com efeito, as testemunhas são uníssonas em afirmar que o discurso do acusado atentou de modo discriminatório e preconceituoso contra as religiões de matriz africana e seus praticantes.”
“Além disso, a conduta do réu comprometeu a integridade física dos adeptos do candomblé e das demais religiões de origem africana, deixando-os temerosos por suas vidas e para praticar seus cultos, notadamente porque, historicamente, são grupos já estigmatizados socialmente e perseguidos de formas diversas, sendo, não raramente, afugentados de seus locais de culto justamente em razão da discriminação como a praticada pelo acusado”, escreveu a juíza Ana Cecília Toscano Vieira Pinto, no Processo: 0000176-80.2022.8.17.2710, que tramita no Judiciário pernambucano, que tramitou na Vara Criminal da Comarca de Igarassu (PE).
Qual é a igreja evangélica do pastor condenado
O pernambucano Aijalon Berto Florêncio usou o direito previsto na Constituição Federal, no artigo 5º, VI, que permite a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e proteção aos locais de culto e as suas liturgias, para criar a sua própria igreja. Segundo a Junta Comercial de Pernambuco, Aijalon Florêcio criou a Igreja evangélica Ministério Dunamis, cuja sede mundial fica na Rua Rosa Tude de Melo, 95, Bairro Cruz de Rebouças, Igarassu, em Pernambuco.
Igarassu fica 25 quilómetros ao Norte de Recife. DE acordo com a Junta Comercial daquele Estado, a Igreja Evangélica Ministério Dunamis foi registrada no dia 17 de julho do ano passado, tendo pouco mais de um ano e está cadastrada na Receita Federal do Brasil com o CNPJ de número 48.208.451/0001-45.