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Reposicionamento de medicamento pode ser promissor para tratar raiva humana, diz pesquisa da USP

 Estrutura interna do vírus da raiva; grande parte do avanço da infecção se deve à sua capacidade de desligar o sistema imune no sistema nervoso da pessoa infectada, causando a maior parte dos danos ao paciente | Foto: Scientific Animations

O reposicionamento de fármacos, ou seja, descobrir novos usos para remédios já usados para outras doenças, surge como possibilidade de tratamento efetivo para a raiva humana em pesquisa da Faculdade de Medicina Veterinária (FMVZ) da USP. Em testes com animais, o medicamento Hiltonol, já aprovado em uso para seres humanos em casos de câncer, inibe a desativação das defesas do organismo pelo vírus da raiva, freando a progressão da doença e aumentando a sobrevida dos infectados.

Os resultados dos experimentos são descritos em um preprint, versão preliminar de artigo científico (ainda não revisada), divulgado no site bioRxiv. Desde então, os pesquisadores continuaram com os ensaios em modelo animal, conseguindo mais avanços no tempo de sobrevivência e na regressão dos sinais da raiva. A próxima etapa são os testes em culturas de células e, depois, em seres humanos.

“A raiva humana é uma doença com 100% de letalidade que pode ter uma incubação de algumas semanas até alguns meses”, relata ao Jornal da USP o professor Paulo Eduardo Brandão, da FMVZ, que coordena o estudo. A doença é transmitida pela saliva de animais infectados, por meio de mordidas e lambidas. “Os primeiros sinais são inespecíficos, incluindo febre e dor de cabeça, que evoluem para dificuldade de deglutição, de onde deriva o termo hidrofobia, pois o paciente, ao não conseguir beber por apresentar contrações na musculatura da laringe, dá a impressão de ter medo de água.”

“A doença evolui para alterações de comportamento, com aumento da agressividade, alucinações, paralisia, disfunção geral e morte por parada cardiorrespiratória em cerca de uma semana após os primeiros sinais”, aponta Brandão. “É uma doença terrível, não só pelo extenso sofrimento experimentado pelo paciente, mas também ao pessoal médico e aos familiares, que presenciam a rápida degeneração da pessoa acometida rumo a morte certa.”

De acordo com o professor, todo ano, ao menos 59 mil pessoas morrem por raiva no mundo, a maior parte na África e na Ásia. “Em 2023 no Brasil houve dois casos, sendo um no Ceará e outro em Minas Gerais, e é raro ter-se um ano em que casos não ocorram por aqui.”

Imunidade

Atualmente, os pacientes com raiva são mantidos em coma induzido para aliviar seu sofrimento e recebem um coquetel de antivirais usados contra vírus diferentes do da raiva. No entanto, o procedimento apresenta uma baixíssima taxa de sucesso, a um custo extremamente alto.

“Este protocolo, que é também altamente agressivo ao paciente, foi adotado pela primeira vez com sucesso em 2004 em uma menina com raiva nos Estados Unidos”, relata Brandão. “Também já foi usado no Brasil, com um caso de sucesso mas, por seus efeitos adversos e baixíssima taxa de sucesso, algumas correntes médicas desaconselham seu uso.”

O professor explica que grande parte do sucesso do vírus da raiva está na sua capacidade de desligar o sistema imune no sistema nervoso da pessoa infectada. É nessa parte que o vírus causa a maioria dos danos no organismo do paciente.

“Um mensageiro fundamental na cascata da reação das células a uma infecção viral é a proteína interferon, que é justamente por onde o vírus da raiva bloqueia o sistema antiviral e fica livre para se reproduzir”, ressalta. “Há alguns anos sabe-se que moléculas de RNA de dupla fita sintéticas, se injetadas no organismo, são capazes de induzir [a produção de] grande quantidade de interferon, o que é útil para combater não só infecções virais, mas também alguns tipos de câncer.”

Ao longo de 19 anos de estudos, o grupo de pesquisa do professor da FMVZ obteve bons resultados com o uso de anticorpos contra o vírus da raiva em células cerebrais e com o uso de sondas que degradam seu RNA (moléculas que transmitem informação genética para as células do corpo). “Também testamos cerca de 20 drogas em animais que infectamos com o vírus, selecionados com base em cada fases de replicação, além de algumas que induzem interferon, mas com resultados ou nulos ou de pouco significado”, conta. “Então, numa conversa com a professora Cristina Massoco, da FMVZ, tomei conhecimento dos experimentos com o Hiltonol, um medicamento já aprovado para uso em seres humanos, em casos de câncer em cães”

“O Hiltonol é exatamente um composto com RNA sintético de fita dupla que faz com que as células se encham de interferon”, relata. “Rapidamente desenhamos um experimento com este medicamento e o que vimos em camundongos rábicos foi que o período desde a inoculação viral até os primeiros sinais se estendeu, bem como o tempo de sobrevivência destes animais quando comparados aos camundongos tratados com placebo.”

Brandão afirma que o objetivo do preprint era compartilhar os resultados com a comunidade científica e permitir que outros grupos usassem e aprimorassem a pesquisa livremente. “Desde a publicação, já realizamos modificações no protocolo de tratamento que levaram não só a menor letalidade, resultando em animais sobreviventes, mas algo mais surpreendente: a regressão dos sinais de raiva”, salienta.

“A raiva é uma doença negligenciada e todo o caminho desde a eleição de um medicamento até seus testes in vitro, in vivo e em fases clínicas em humanos é lento em função do baixo interesse da comunidade científica e das companhias farmacêuticas no tema e da falta de investimentos públicos focados”, observa o professor. O artigo Prolonged survival of rabid mice after treatment with Poly-ICLC Hiltonol® foi publicado como preprint (versão preliminar) no site bioRxiv em 20 de setembro.

Texto: Júlio Bernardes/Jornal da USP