A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 10, de 2022, que altera o artigo constitucional 199 que proíbe o comércio e o luicro com a venda de sangue humano, não foi abandonado pelos congressistas e está pronta para ir ao plenário do Senado para votação. Segundo o Senado Federal ainda não tem data marcada, mas já está aguardando a ordem do dia para ir à votação.. Mas, caso a PEC seja aprovada, a proposta será remetida à Câmara dos Deputados para nova votação.
No dia 4 de outubro do ano passado, a PEC que legaliza a comercialização de sangue humano no Brasil foi aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) com 15 votos favoráveis e 11 votos contrários. Entre os senadores que votaram a favor do comércio de sangue humano está Marcos do Val, eleito pelo Espírito Santo pelo Cidadania e, atualmente, no Podemos.
Atualmente o sangue é coletado por doações voluntárias
Segundo a Agência Senado de Notícias, de todo o material que os bancos de sangue públicos e privados colhem no país, por meio de doações voluntárias, uma parte é utilizada em transfusões e o plasma sanguíneo que sobra deve ser enviado à Hemobrás, a empresa estatal ligada ao Ministério da Saúde que cuida da transformação dessa matéria-prima biológica em medicamentos hemoderivados destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS).
De acordo com a PEC do Plasma, a Constituição seria alterada para que os bancos de sangue privados ganhem o direito de vender o plasma, parte que muitas vezes não faz parte das transfusões. Quem compraria esse componente seriam empresas farmacêuticas, que o processariam e venderiam os medicamentos ao mercado privado e à rede pública.
Objetivando lucrar com o sangue humano
Entre os defensores da PEC do Plasma, está a Associação Brasileira de Bancos de Sangue, que representa os hemocentros privados, a Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, que congrega os médicos especialistas nas doenças do sangue, e a Associação Eu Luto pela Imuno Brasil, que fala em nome dos pacientes com alto poder econômico que possuem deficiência imunológica.
Os defensores do comércio enxergam um mercado lucrativo e citam que omercado das imunoglobulinas movimentou no mundo US$ 10,7 bilhões em 2017 e US$ 15,3 bilhões no ano passado. A estimativa para o ano que vem é de US$ 18,3 bilhões. Em outubro do ano passado, durante a votação da PEC do Plasma na CCJ, manifestantes que acompanharam a reunião empunharam cartazes com dizeres como “sangue não é mercadoria” e “não à PEC do comércio de sangue.”
Retrocesso civilizatório
O secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação do Ministério da Saúde, Carlos Gadelha, descreve a PEC do Sangue como “retrocesso civilizatório” e destaca uma consequência negativa:
“Os defensores da PEC garantem que o Brasil colherá mais. Será o contrário. Muita gente que hoje doa sangue por altruísmo desistirá de doar quando souber que o seu plasma será objeto de comércio e renderá lucro para a iniciativa privada. As doações cairão, prejudicando muita gente que precisa, como as vítimas de acidentes de trânsito que todos os dias chegam às emergências dos hospitais”, acentuou.
Gadelha diz que a Hemobrás está aberta a parcerias com a iniciativa privada, “mas sem que o sangue vire mercadoria”. Também são contrários à PEC os dois senadores que já estiveram à frente do Ministério do Saúde, Marcelo Castro (MDB-PI) e Humberto Costa (PT-PE) — esse último era o ministro da Saúde quando o presidente Lula sancionou a lei de criação da Hemobrás.
Eles afirmam que a estatal oferecerá medicamentos mais baratos que os das empresas privadas estrangeiras. Segundo os senadores, em vez de se privatizar o plasma, é preciso investir ainda mais na Hemobrás, para que gradualmente amplie sua capacidade de produção.
Humberto aponta outra consequência negativa da PEC: “O argumento de que as empresas farmacêuticas vão garantir a autossuficiência de imunoglobulinas para o Brasil é falacioso. A PEC não diz que serão obrigadas a comercializar no Brasil. Isso significa que elas poderão comercializar em qualquer lugar do mundo. O que as empresas seguem são as leis do mercado.”
A versão atual da PEC estabelece que os hemoderivados produzidos pela iniciativa privada deverão “prover preferencialmente o SUS”. O senador continua:” Na minha avaliação, isso é apenas a ponta de um iceberg. Começa com esta discussão do plasma, daqui a pouco vem a discussão de órgãos e outros tecidos e então se abre uma porta e sai da garrafa um gênio que ninguém consegue colocar dentro de novo.”
Preocupação
A presidente da Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia, Mariana Leme Battazza, também vê com preocupação a PEC do Plasma: “A proposta não fala em remuneração aos doadores de plasma, mas poderá haver outros tipos de compensação, como o pagamento da alimentação e da condução no dia da doação.”
Paea Battazza, o intuito de visar apenas o lucro com o comércio de sangue, traz o risco de criar uma indústria de pessoas que usem esse mecanismo como meio de sobrevivência, em especial se for liberada para os bancos de sangue privados a doação por aférese, que permite uma ou duas doações de plasma por semana. Esse risco é elevado porque temos no Brasil uma população de baixa renda muito grande.
A dirigente da Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia teme que o Brasil volte ao cenário anterior a 1988, em que a doação de sangue podia ser remunerada e as infecções por hepatite e pelo recém-chegado HIV foram às alturas.
“A qualidade do plasma doado pode ficar comprometida, porque serão poucas pessoas doando com uma frequência muito alta. Apesar de o Brasil adotar as melhores tecnologias de detecção de vírus, o risco de contaminações ainda existe, seja por causa da janela imunológica [período entre a infecção por HIV e a produção de anticorpos contra o vírus pelo organismo em quantidade suficiente para serem detectados por testes], seja porque vírus novos ou desconhecidos podem surgir, como é o caso do zika”, afirmou.
“Não é à toa que o poder público tem o monopólio do sangue no Brasil. Isso se tornou comum em diversas partes do mundo depois do advento do HIV, como forma de garantir a qualidade do sangue e a segurança da população. Não podemos repetir agora os erros do passado”, complementou.
Nessa ocasião, uma das vítimas do sangue contaminado foi o sociólogo e ativista Herbert de Souza, o Betinho, que era hemofílico, contraiu o HIV numa transfusão na década de 1980 e militou para que o monopólio público do sangue fizesse parte da Constituição e fosse depois regulamentado. Ele morreu em 1997, sem ver a regulamentação, que só viria em 2001 — a Lei do Sangue também é conhecida como Lei Betinho.