Professores da Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG, mergulham no universo de pessoas que investem no próprio negócio para vencer o preconceito e a discriminação
O mercado de trabalho brasileiro formal não é nada inclusivo, em especial para as pessoas LGBT+, não heterossexuais e não cisgênero. Pesquisa da Pulses, em parceria com a Nhs Somos, revela que menos de 10% dos colaboradores das empresas fazem parte de algum grupo minoritário. Os dados são tristes, mas não surpreendem.
De acordo com o grupo Gay da Bahia, o Brasil é o país mais homotransfóbico do mundo, com mais mortes violentas por preconceito contra pessoas LGBT+. Vivendo em uma sociedade opressora e grande parte das vezes sem encontrar oportunidades no mercado de trabalho formal, muitas pessoas LGBT+ recorrem ao empreendedorismo – não como escolha, mas como forma de sobrevivência. Elas acabam criando pequenos negócios para transformar sua própria realidade.
O professor Francisco Vidal, da Faculdade de Ciências Econômicas (Face) e fundador do Projeto Incluir, acredita que o empreendedorismo é uma forma de lidar com os problemas que a vida apresenta: “Empreendedorismo tem tudo a ver com a capacidade que as pessoas têm de resolver problemas, de prover soluções para todas as dificuldades que a vida oferece e que as empresas e o dia a dia apresentam. O empreendedorismo tem a ver também com a capacidade de perceber e identificar oportunidades, com a capacidade de assumir riscos calculados, com a visão de prover soluções e uma visão mais inovadora da forma como se resolve problemas. Tem a ver com utilização adequada de recursos, com a capacidade de, a partir de um problema, fazer uma escala desse problema para que as condições e soluções sejam distribuídas ou compartilhadas por um número maior de empresas, de pessoas.”
De acordo com o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), 95% dos empreendimentos formais no país são pequenos negócios, responsáveis por 30% do PIB e por impactar, direta ou indiretamente, 47% da população brasileira. Por isso, hoje a economia nacional é dependente do êxito dos empreendimentos, em especial dos pequenos negócios, como explica Vidal:
“O empreendedorismo ajuda a reduzir o desemprego, a criar novas oportunidades, a gerar emprego, riqueza, renda para as pessoas e prover uma melhor qualidade de vida para todos. O empreendedorismo também afeta a inovação, a competitividade, o desenvolvimento local, nacional, global. Ele afeta também a produtividade. Então, ele tem todas as condições de ser um motor para os países crescerem e se desenvolverem”, diz o professor Vidal.
O lado esquecido do empreendedorismo
O mestre em administração pela UFMG João Delgado destaca que ter um negócio de sucesso como empreendedor LGBT+ exige, muitas vezes, enfrentar dificuldades que empresários heterossexuais e/ou cisgêneros não costumam encontrar, além de esconder um esforço dobrado ou triplicado.
“Esse empreendedor de sucesso é uma produção histórica, discursiva que vai retomar a imagem do grande colonizador, o homem branco e heterossexual. Ele é o conquistador que representou o sucesso do projeto colonial e moderno. Então, a gente não pode esquecer que a projeção dessa imagem de herói, com muitas aspas, vai inspirar a própria noção de quem é o empreendedor. A partir disso, a gente já tem uma resposta possível para o que seriam essas ramificações identitárias do empreendedorismo, como o feminino, o negro e o LGBT+. São outros sujeitos que sequer foram considerados na origem do projeto empreendedor, porque, na realidade, o sucesso do homem branco e heterossexual depende da exploração e do fracasso de todos os outros”, afirma o mestre.
“E não é de se espantar que agora, em um novo contexto histórico em que mulheres, negros e pessoas LGBT+ aparecem como empreendedores, eles sejam mais suscetíveis a violências materiais e simbólicas. Eles não correspondem àquilo que as pessoas imaginam. O que é ser um empreendedor de sucesso?”, questiona Delgado.
Empreendedorismo feito por e para pessoas LGBT+
O simples ato de sair de casa para dançar com pessoas amigas e paquerar em uma casa noturna pode não ser tão simples para pessoas LGBT+. Mesmo diante da criminalização da LGBT+ fobia, elas sofrem preconceitos dentro de bares e boates. Por isso, casas voltadas essa público são uma alternativa para a comunidade se sentir mais segura e livre. É o caso do Giz Club, na capital mineira. Neste ano, a casa completa 24 anos, uma raridade na cena noturna de BH. A maior parte das boates LGBT+ inauguradas antes ou à mesma época em que o Giz Club foi aberto, hoje estão falidas.
A fundadora, a empresária e mulher lésbica, Giselle Andrade, comenta o sucesso do Giz, clube que há duas décadas permite que pessoas LGBT+ curtam plenamente a vida no local: “Eu tenho orgulho de ter esse nome porque desde quando eu comecei, foi esse público que sempre me acompanhou, sempre me apoiou. E eu pude ter o Giz. Até hoje, depois de 24 anos, me orgulho por saber que tantas gerações passaram aqui, eu fico ouvindo tantas histórias, sabe? De pessoas, de casais gays que se formaram na casa, e isso é um motivo de muito orgulho na minha vida”.
A empresária destaca a necessidade de se respeitar as pessoas e empreendedoras LGBT+: “Independentemente da sua orientação sexual ou profissão, todos merecem ser tratados com respeito e dignidade. O fato de alguém ser lésbica ou empresária não define sua competência, caráter ou valor como ser humano. Em vez julgar com base em preconceitos, devemos conhecer e entender as experiências e a contribuição das pessoas LGBT+ para o progresso da nossa cidade, estado e país”, defende Gisele Andrade.
Mais do que transformar realidades locais, ao lançar negócios voltados ao público LGBT+, muitas vezes excluído por outras empresas, o empreendedorismo LGBT+ feito por pessoas da própria comunidade possibilita a ocupação de lugares que não destinados socialmente a elas. É o que afirma o mestre em Administração pela UFMG, João Delgado:
“A gente tem visto que ramificações mais identitárias do empreendedorismo, como o LGBT+, também caem nessa ideologia do sucesso. Em alguns casos, existe, sim, o engajamento com uma causa mais coletiva, uma intenção de criar espaços de acolhimento, de liberdade sexual, que também podem servir como motivação para abertura do próprio negócio. Mas, para discutir empreendedorismo, é preciso que a gente tenha uma atenção a esse fenômeno de maneira mais ampla, em como as pessoas, de certa forma, vendem um empreendimento próprio como a solução de tudo, inclusive para violência LGBT+fóbica, o que não é verdade, porque não significa que esses empreendedores também não passem por esse desafio na abertura de um próprio negócio. A gente então tem diferentes motivações, e eu diria que a alternativa ao emprego formal é mais uma delas”, avalia o mestre.
Superando a discriminação
A centenas de quilômetros de BH, o empresário do ramo da moda e homem gay, Thiago Tavares, sente na pele o que é ter de se esforçar mais para montar um negócio. Ele é dono da Lily, loja de vestuário feminino instalada em Copacabana, no Rio de Janeiro. Ele utiliza das roupas para aumentar a autoestima feminina
“A gente vive nessa sociedade pensando muito nessa discriminação, porque, quando se descobre, passa por esse processo todo, de sofrer bullying no colégio, com os amigos, com a família, até entender que amar é tão bonito e é tão genuíno. Não existe amor melhor no mundo do que amar e ser amado na retribuição. Então por que eu não consegui dar certo de alguma maneira? Então a gente briga realmente por um espaço! Graças a Deus, consegui canalizar tudo nesse empreendimento: Foi muito ruim sofrer várias formas de preconceito, mas sei que hoje eu posso empreender para as pessoas, ter funcionários, posso realizar meus sonhos e conquistar as coisas na vida”, diz Tavares.
A romantização e a necessidade de políticas públicas
O professor de Economia da UFMG, Francisco Vidal, reconhece a importância do empreendedorismo para a mudança da realidade de pessoas excluídas, mas reforça a necessidade de não se romantizar o ato de empreender:
“Em hipótese alguma, o empreendedorismo deve ser romantizado. Empreendedorismo tem vários aspectos positivos, mas não é fácil. Empreender não é fácil. Construir algo do início e fazer ele se tornar um sucesso perpassa muitos riscos e desafios. É uma realidade dura. O empreendedor tem que batalhar bastante, colocar muito tempo e energia para que ele possa ter sucesso no seu empreendimento. Existem muitos riscos de falência. É um aprendizado contínuo. Isso impacta a vida pessoal? Muito, porque o empreendedor tem que trabalhar sete dias por semana, 30 dias por mês e 365 dias por ano, para que ele possa conseguir sucesso”, diz o professor.
Tiago Tavares pede mais apoio por parte do governo para o empreendedor, por meio, por exemplo, da abertura de linhas de crédito especiais e diminuição da carga tributária. Fundador da startup Profissas, dedicada à inclusão das pessoas LGBT+, o comunicador social Victor Lambertucci, graduado pela UFMG, defende as políticas afirmativas para a comunidade empreender:
“Quando a gente fala de diversidade, de inclusão, tem duas coisas que são fundamentais: intencionalidade e ações afirmativas. Ao ponto que a gente entende que a gente ainda vive numa sociedade, num mercado de trabalho excludentes, que privilegiam uns à revelia de muitos outros, a gente pra colocar essa pluralidade e incluir essa pluralidade nesse ambiente, a gente precisa realmente de agir de forma muito pontual, muito intencional, muito criteriosa. E o empreendedorismo? Ele muitas vezes é alternativa para pessoas de grupos que ainda não conseguem acessar ao mercado de trabalho ou se manter nele, por uma série de obstáculos, de um padrão social excludente, de um ambiente que ainda é hostil, que privilegia um determinado perfil à revelia de outros. E o empreendedorismo acaba sendo um caminho para essas pessoas poderem ter o seu ganha pão, pagar os seus boletos e crescer na sua carreira, como acontece com pessoas LGBT+, como acontece com pessoas pretas, com pessoas com deficiência e por aí vai”.
Para Lambertucci, é de certa forma natural que as pessoas LGBT+ empreendam: “Afinal, se não têm uma porta aberta para o mercado de trabalho formal, elas têm que buscar outras alternativas, como o empreendedorismo. E muitas pessoas ainda na informalidade. Por isso é tão importante que o governo federal seja mais proativo e tenha políticas afirmativas direcionadas para esse público. Sem falar que investir no empreendedorismo é investir no talento, na criatividade brasileira e trazer mais vagas de emprego e desenvolver a nossa economia, pensando que as pequenas empresas são as que mais empregam no nosso país.
Ao contrário do que se pensa, dar acesso, reconhecimento e estrutura para grupos como as pessoas LGBT+, que ainda não têm o mesmo espaço no mercado de trabalho, pode ser muito frutífero, tanto para essas pessoas se desenvolverem e terem sucesso nos seus negócios, mas também para gerar mais vagas para trazer desenvolvimento para a população local e nacional”.
Empreendedor
O engenheiro Marcelo Marques Ribeiro é empreendedor em BH, longe das ondas que rodeiam o empreendedor Thiago, em Copacabana, no Rio de Janeiro, mas também tenta se equilibrar na prancha do sucesso do próprio negócio. Marcelo, mantém a Gay para toda obra, que presta serviços de pequenos reparos domésticos, tendo como principal público as mulheres e homens gays.
Ele também defende mais apoio do governo: “Grupos minoritários em geral, não só pessoas LGBT+, deveriam ter algum tipo de facilitação. Talvez uma redução de imposto, talvez plataformas de divulgação, alguma forma de abrir os horizontes de possibilidades de um negócio, do seu alcance”.
No dia a dia, o negócio de Marcelo Marques busca oferecer também segurança para mulheres e homens gays que foram ou temem ser vítimas de assédio ou violência. É uma forma de empreender com sensibilidade e lutando contra o machismo e a LGBT+ fobia: “Por ser um homem gay afeminado, eu nunca me senti seguro perto de homens heterossexuais. Eu também sei que mulheres e pessoas LGBT+ não se sentem confortáveis com homens héteros, prestadores de serviço, quando essas pessoas estão sozinhas em casa e precisam receber esse prestador de serviço. Foi uma forma que eu arrumei de trabalhar sem ter que lidar com o medo do homem hétero no meu dia a dia e de também poder oferecer para essas pessoas um pouco mais de segurança quando elas estiverem precisando de um prestador de serviço na casa delas. Eu não deixo de atender, por exemplo, a casais héteros e a alguns homens héteros, quando vêm de indicação ou quando é amigo de algum amigo, mas não é a minha prioridade”.
Texto/Ficha técnica-Rádio UFMG Educativa:
Produção e reportagem: Ruleandson do Carmo
Edição de texto: Alessandra Dantas
Pessoas entrevistadas: Francisco Vidal (projeto Incluir e professor da Face UFMG), João Delgado (mestre em administração pela UFMG), Gisele Andrade (empreendedora e mulher lésbica), Tiago Tavares (empreendedor e homem gay), Marcelo Marques (engenheiro, empreendedor e homem gay), Victor Lambertucci (comunicador social e fundador da startup Profissas)