A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, criada em dezembro de 2012 durante o governo da presidente Dilma Rousseff, divulgou neste início de semana o resultado do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar em contexto do Covid- 19 no Brasil. Os dados mostram que durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) a fome retornou de forma alarmante. “Em apenas dois anos, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões. Nesse período, quase 9 milhões de brasileiros e brasileiras passaram a ter a experiência da fome em seu dia a dia”, diz o documento.
Essa rede foi criada durante um seminário, em Brasília, pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e Ministério das Relações Exteriores (MRE). Este seminário produziu uma Carta Política a qual indicou a necessidade de constituir uma rede de pesquisadores no Brasil. Nessa ocasião haviam os restaurantes, chamados de restaurante de R$ 1,00, que foram criados pelo presidente Lula e destruídos com a ascensão de Bolsonaro. A íntegra do relatório está no endereço http://olheparaafome.com.br
A pesquisa divulgada nesta segunda-feira (5) foi realizada em parceria com o Instituto Ibirapitanga, ActionAid Brasil, Oxfam Brasil e Fundação Friedrich Ebert Brasil, e execução do trabalho de campo e coleta de dados pelo Instituto Vox Populi em dezembro de 2020. Segundo os dados do documento, de uma população total no Brasil estimada pelo IBGE em 212.677.734 pessoas, atualmente há 116,8 milhões de brasileiros em estado de insegurança alimentar. A quantidade é o dobro da população da Argentina.
Fome
Segundo a pesquisa, a insegurança alimentar cresceu em todo país, mas as desigualdades regionais seguem acentuadas. As regiões Nordeste e Norte são as mais afetadas pela fome. Em 2020, o índice de insegurança alimentar esteve acima dos 60% no Norte e dos 70% no Nordeste – enquanto o percentual nacional é de 55,2%. Já a insegurança alimentar grave (a fome), que afetou 9,0% da população brasileira como um todo, esteve presente em 18,1% dos lares do Norte e em 13,8% do Nordeste.
O Nordeste apresentou o maior número absoluto de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, quase 7,7 milhões. Já no Norte, que abriga apenas 7,5% dos habitantes do Brasil, viviam 14,9% do total das pessoas com fome no país no período. Além disso, a conhecida condição de pobreza das populações rurais, sejam elas de agricultores(as) familiares, quilombolas, indígenas ou ribeirinhos(as), tem reflexo importante nas condições de segurança alimentar. Nessas áreas, em todo o país, a fome se mostrou uma realidade em 12% dos domicílios.
Fome tem gênero, cor e grau de instrução
Algumas condições individuais podem afetar negativamente a situação de segurança alimentar. Nos dados de 2020, em 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres os habitantes estavam passando fome, contra 7,7% quando a pessoa de referência era homem. Das residências habitadas por pessoas pretas e pardas, a fome esteve em 10,7%. Entre pessoas de cor/raça branca, esse percentual foi de 7,5%.
A fome se fez presente em 14,7% dos lares em que a pessoa de referência não tinha escolaridade ou possuía Ensino Fundamental incompleto. Com Ensino Fundamental completo ou Ensino Médio incompleto, caiu para 10,7%. E, finalmente, em lares chefiados por pessoas com Ensino Médio completo em diante, despencou para 4,7%.
Insegurança alimentar avançou
Houve em dois anos um aumento acentuado na proporção da insegurança alimentar leve – de 20,7% para 34,7%. Cerca de metade dos entrevistados relatou redução da renda familiar durante a pandemia, provocando inclusive cortes nas despesas essenciais. Esses lares constituem o grupo com maior proporção de insegurança alimentar leve – por volta de 40%.
Isso aponta para o impacto da pandemia entre famílias que tinham renda estável, que provavelmente foram empurradas da segurança alimentar para a insegurança alimentar leve. A crise econômica agravada pela pandemia está fazendo com que a insegurança alimentar se alastre inclusive entre os que não se encontram em condição de pobreza.
Conclusão
A solução apontada para erradicar a fome passa por políticas de geração de emprego e renda, concluíram os pesquisadores. Em tempos de Covid-19, no entanto, os desafios são maiores. O sucesso da garantia do direito humano à alimentação adequada, alcançado até 2013, foi progressivamente revertido a partir de 2014, e ganhou impulso negativo maior com o início da pandemia da Covid-19.
Famílias que solicitaram e receberam parcelas do auxílio emergencial conviviam com alta proporção de insegurança alimentar moderada ou grave (28%), o que enfatiza a grande vulnerabilidade desse grupo. Sem uma resposta adequada dos governos em forma de políticas públicas, a fome vai persistir – e aumentar. A escalada da fome durante a pandemia não é de responsabilidade de um vírus, mas de escolhas políticas de negação e da ausência de medidas efetivas de proteção social.