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Sob a ameaça de privatização, pesquisadores encontram sapinho raro na Mata Atlântica do ES


A privatização de unidades de conservação do ES, os parques estaduais, vem preocupando cientistas que cuidam da preservação de espécies em extinção, uma vez que poderão vir a ter o processo de extinção acelerado


Sob a ameaça de privatização, pesquisadores encontram sapinho raro na Mata Atlântica do ES | Foto: João Victor A. Lacerda

Meses antes do Governo do Espírito Santo implementar efetivamente seu projeto de privatização e transformar as unidades de conservação, os parques públicos estaduais e onde há espécies em extinção, em locais com grandes instalações de empreendimentos turísticos, ainda é possível descobrir animais quase extintos. É o que está anunciando o Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA), órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, com sede nacional em Santa Teresa (ES).

De acordo com o INMA, gravações e fotografias enviadas por cidadãos cientistas permitiram o mapeamento de novas ocorrências do sapinho-de-chifre-paviotii (Proceratophrys paviotii), um anfíbio exclusivo da Mata Atlântica e classificado como Quase Ameaçado (NT) de extinção pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).

Com a localização desses indivíduos, especialistas realizaram coletas inéditas de material genético e gravações do repertório vocal dessa ainda pouco conhecida espécie. O resultado desse trabalho está no artigo publicado hoje no periódico internacional PeerJ, envolvendo pesquisadores do Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), Universidade Federal de Goiás (UFG) e Universidade Federal do ABC (UFABC).

Misterioso sapinho-de-chifre

De maneira inédita, o artigo também apresenta à comunidade científica uma comprovação de identidade e relações evolutivas com base em DNA, detalha o repertório vocal desse misterioso sapinho-de-chifre e fornece novas informações sobre seu estado de conservação.

“O estudo representa um exemplo prático e bem-sucedido de como o maior engajamento da sociedade em projetos de pesquisa, abordagem conhecida como Ciência Cidadã, pode ser benéfico para a ampliação do conhecimento científico e conservação das espécies”, destaca João Victor A. Lacerda, pesquisador do INMA e um dos autores do artigo.

Em 2020, pesquisadores do INMA, unidade de pesquisa sediada no município de Santa Teresa, no Espírito Santo, criaram o projeto “Cantoria de Quintal”, que conta com a participação do público na realização de registros de ocorrências de espécies de anfíbios no estado.

Utilizando o aplicativo telefônico Whatsapp, pessoas de diferentes idades, realidades e localidades interagem com especialistas enviando arquivos de sons ou imagens desses animais. Em menos de quatro anos, o projeto recebeu mais de 900 arquivos enviados por 160 cidadãos cientistas, contemplando cerca de 40 espécies, incluindo algumas ameaçadas de extinção, raras ou pouco conhecidas pela ciência.

Espécie pouco conhecida

Entre os registros, chamou a atenção dos pesquisadores os do sapinho-de-chifre-paviotii, por ser considerada uma espécie pouco conhecida e classificada como Quase Ameaçada (NT) de extinção. Ao todo, 42 registros foram enviados por 10 cidadãos cientistas na região de Santa Teresa/ES. Essas ocorrências foram enviadas utilizando a ferramenta de “Localização” do aplicativo Whatsapp, sendo assim possível um mapeamento preciso da espécie.

Direcionados por algumas dessas ocorrências, os especialistas realizaram pesquisa de campo para gravação do repertório vocal utilizando gravadores apropriados e coleta de material genético. Em laboratório, as gravações foram analisadas utilizando softwares específicos e o DNA foi extraído das amostras, sequenciado e comparado aos demais sapinhos-de-chifre, o que confirmou realmente tratar-se de uma espécie única, distinta de todas as demais do planeta e evolutivamente mais relacionada a três outros sapinhos-de-chifre que ocorrem no nordeste e sudeste do Brasil (Proceratophrys cururu, P. renalis e P. laticeps).

Ameaça de extinção

Os anfíbios (sapos, rãs, pererecas, cecílias e salamandras) estão entre os animais mais ameaçados de extinção do planeta. Duas em cada cinco espécies correm sério risco de desaparecerem para sempre. “Iniciativas focadas na ampliação do conhecimento e monitoramento de anfíbios devem ser, cada vez mais, encorajadas. Nesse sentido, projetos de Ciência Cidadã têm contribuído em larga escala na geração de dados sobre anfíbios mundo afora”, destaca Natalia Pirani Ghilardi-Lopes, professora da UFABC e uma das autoras do artigo.

No Brasil, o projeto “Cantoria de Quintal” é pioneiro ao lidar com gravações sonoras enviadas pelo público. “A partir da publicação desse estudo, esperamos inspirar e estimular o surgimento de iniciativas semelhantes, sobretudo em nosso país, o mais diverso em espécies de anfíbios do planeta!”, enfatiza João Victor, coordenador do projeto.

O sapinho-de-chifre-paviotii está classificado como Quase Ameaçado (NT) de extinção – indicando que a probabilidade de a espécie passar a figurar entre as ameaçadas é alta. No entanto, o estudo apontou que, ao contrário do que se pensava, ele não é tão raro assim, tendo sido reportado por cidadãos cientistas até mesmo em quintais e poças de chuva formadas em ruas calçadas. “Com isso, acreditamos  que, em avaliações futuras, o estado de conservação do sapinho-de-chifre-paviotii passe a ser classificado como Menos Preocupante (LC) e não mais Quase Ameaçado (NT)”, comenta Diego J. Santana, professor da UFMS e um dos autores do artigo.

“Ainda assim, a vigília deve ser constante! Recomendamos a busca por populações desconhecidas dessa espécie e que sejam realizados programas de monitoramento. Nesse sentido, a descrição e disponibilização do repertório vocal do sapinho-de-chifre-paviotii, bem como da sua identidade genética, certamente facilitam seu reconhecimento específico e, consequentemente, favorecem a realização de novos registros e implementação de estratégias de monitoramento”, explica Sarah Mângia, pesquisadora da UFMS e também uma das autoras do estudo.

Ciência Cidadã

A participação do público no estudo se restringiu à coleta e envio de dados de ocorrência. No entanto, o envolvimento da sociedade em projetos de Ciência Cidadã pode ocorrer em diferentes níveis e intensidades. Assim, cidadãos cientistas podem participar da proposição das perguntas de pesquisa, delineamento dos métodos a serem colocados em prática, geração e análise de dados, ou divulgação dos resultados atingidos. Eles podem, inclusive, participar de todas essas etapas.

O projeto “Cantoria de Quintal” tem buscado estimular um maior engajamento do público também em diferentes etapas da pesquisa, como redação de guias fotográficos e textos científicos. Para isso, os pesquisadores têm estreitado laços com estudantes e professores do Ensino Básico, bem como gestores, funcionários, guias turísticos e demais visitantes de Unidades de Conservação.

“Apesar de bastante desafiador, tem sido recompensador observar um maior envolvimento de diferentes setores da sociedade sobre a ciência e conservação, sobretudo se tratando de anfíbios, seres muitas vezes repudiados pela população. Assim, além de gerar dados valiosos, como os publicados neste estudo, o projeto “Cantoria de Quintal” tem a pretensa meta de aproximar o público, de forma cada vez mais intensa, do método científico, alterando, com isso, a maneira como as pessoas compreendem a ciência, interagem com a ciência e credibilizam a ciência”, finaliza João Victor.