Moradores e especialistas opinam sobre o programa polêmico da Secretaria de Meio Ambiente
Reprodução do artigo de Beatriz Brandão para o jornal-laboratório Universo Ufes-Primeira mão
“A sensação que eu tenho é de que isso é um total desrespeito do Governo do Estado com a gente. Estão passando por cima da nossa história sem se importar, simplesmente pelo lucro”. Foi assim que Luara Reuter, advogada e moradora da Vila de Itaúnas, descreveu o projeto lançado pela Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Espírito Santo (Seama). Recentemente, ambientalistas e moradores de regiões próximas a seis parques naturais do estado foram surpreendidos com o lançamento do Programa Estadual de Desenvolvimento Sustentável das Unidades de Conservação do Estado do Espírito Santo (Peduc).
A iniciativa prevê a concessão dos parques Cachoeira da Fumaça, Forno Grande, Mata das Flores, Pedra Azul, Itaúnas e Paulo César Vinha para o usufruto turístico e econômico de empresas privadas por um determinado período de tempo. A escolha dessas empresas será feita por um leilão na Bolsa de Valores B3, de São Paulo, que está previsto para acontecer já no início de 2025.
Com a justificativa de fomento ao ecoturismo e promessas de geração de empregos e aumento de renda para a população, o Peduc estabelece a construção de hotéis, restaurantes e bangalôs nas áreas de preservação ambiental integral. Entretanto, essas propostas têm gerado preocupações em moradores e especialistas. De acordo com eles, o projeto foi construído sem diálogo e sem uma avaliação ambiental de profissionais competentes.
Itaúnas: tradição e natureza sob ameaça
O Parque Estadual de Itaúnas, localizado no município de Conceição da Barra, é uma das grandes preocupações do movimento contra a Peduc. Além dos riscos em relação à parte ambiental, a área é habitada por comunidades tradicionais, de cultura indígena e quilombola.
O projeto, de acordo com os moradores, não leva em consideração a essência de quem mora ali. “É importante falar que a maioria da população só teve conhecimento desse processo de concessão pela mídia. Não teve nenhum protocolo de construção na comunidade, coisa que é exigida em comunidades tradicionais”, relata Mariana dos Santos, professora e moradora da Vila de Itaúnas.
A professora acrescenta que, desde que o parque foi classificado como Unidade de Conservação, diversas medidas restritivas foram colocadas aos moradores, com o objetivo de preservar a região, mas que agora, o governo quer flexibilizar leis ambientais para favorecer o lucro de algumas empresas. Ela conta que sua família tem um restaurante na região e que as diretrizes para pesca, por exemplo, sempre foram respeitadas por sua mãe. “Isso é um esfacelamento da nossa tradição em benefício de um lucro que a comunidade nem vai ter acesso. A gente já vive bem em Itaúnas”, observa.
Veratriz Souto, moradora de Itaúnas e educadora, pontua que também é preciso considerar que a região do parque conta a história do Espírito Santo. Ela lembra que existem pelo menos quatro sítios arqueológicos no território, por isso as visitações e o turismo precisam ser feitos com cautela. “Eu tenho todo cuidado de marcar as visitações com meus alunos em horários distantes, para não mexer muito na areia e prejudicar o material arqueológico. Mas como vai manter esse controle com 1500 pessoas por dia? É impossível! Com 30 meninos já é difícil!”, comenta.
Os moradores que fazem parte do movimento deixam claro que não são contra o desenvolvimento da região, desde que possam ter participação ativa nas tomadas de decisão. Luara acrescenta que Itaúnas tem algumas carências, mas que elas não serão resolvidas com esse projeto de concessão dos parques. “Eu sou a primeira advogada da Vila, isso não é certo. Eu acho que Itaúnas precisa de oportunidade, mas isso é diferente, totalmente diferente, de subemprego, que é o que eles vão oferecer com esse projeto.”
Luta por memória e biodiversidade no Parque Paulo César Vinha
Outra unidade afetada pelo Peduc é o Parque Estadual Paulo César Vinha, que leva o nome do biólogo que foi assassinado ali devido a sua luta pela preservação da região. O parque é uma unidade de conservação integral, com espécies de plantas e animais que só existem lá.
Ligia Vianna, viúva de César Vinha, afirma que se assustou quando ficou sabendo do Peduc pela mídia. Ela disse que, inicialmente, a Seama informou que faria algumas melhorias na infraestrutura do parque, reformando banheiros e criando um centro de recepção para visitantes, o que ela viu com bons olhos. Entretanto, quando teve acesso ao projeto completo, percebeu que a intenção da secretaria era outra. “O que eles estão propondo acaba com o parque e com o objetivo dele, que é preservar aquela região ali. Eu me assustei e até mandei mensagem para o secretário. Ele me disse que poderíamos marcar uma reunião, mas até hoje, nada”, revela.
De acordo com Ligia, logo que seu marido morreu e o parque foi criado, existia uma comissão executiva que ajudava na conservação da unidade, mas que depois de alguns anos foi extinta. Ela precisou morar um tempo fora do país e, quando voltou, o parque não estava sendo cuidado da mesma forma. “Eu doei algumas coisas do Paulo para lá, tinha uma exposição sobre ele, tinha uma placa de madeira no lugar em que ele morreu, mas tudo isso sumiu, ninguém sabe o que aconteceu”, conta.
Ela afirma que é preciso ter mais atenção e cuidado com o parque, mas que, na sua visão, esse não é o objetivo do Peduc. “Ali a gente precisa de uma infraestrutura mínima para poder receber e orientar quem quer visitar o lugar. Isso se resolveria se a verba estivesse sendo destinada para cuidar do parque. Não precisa de hotel, nem nada disso. Quem vai usufruir disso não é a população, mas quem tem dinheiro”, diz. Ela ainda acrescenta que é importante defender a área tanto pela riqueza de biodiversidade, quanto pelo legado de César Vinha, que faz parte da história do Espírito Santo.
O que dizem os especialistas
O biólogo Walter Có é um dos que expressa profundas preocupações em relação ao projeto. De acordo com ele, a intenção da Seama é transformar áreas de preservação integral em parques recreativos. “Um parque ecológico é completamente diferente de um parque recreativo, ele tem como prioridade proteger a integridade dos ecossistemas e promover meios para que os visitantes possam fazer uso deles de forma compatível com a preservação”, aponta.
O professor explica que o aumento de pessoas nessas regiões pode criar problemas sistêmicos para os parques. Segundo ele, a construção de restaurantes pode desordenar os hábitos alimentares de animais que dependem do olfato para caçar. Além disso, o uso de luzes artificiais pode atrair e confundir algumas outras espécies. Tudo isso pode mudar a dinâmica natural dessas regiões e tendem a enfraquecer os ecossistemas ali presentes. “Não é que a gente não queira pessoas visitando os parques, mas isso precisa ser feito com outra mentalidade. Turismo de massa a gente já tem no litoral do estado, nessas regiões o objetivo tem que ser outro”.
Segundo Walter, o projeto proposto é ilegal e não expressa nenhum tipo de preocupação em preservar essas áreas, portanto, nem deveria ser cogitado por uma secretaria de meio ambiente. “A secretaria deveria estar trabalhando a favor da natureza, mas está trabalhando em favor dos empresários, passando por cima das próprias leis ambientais que protegem essas unidades”, destaca.
Em resposta à afirmação do secretário Felipe Rigoni de que os parques estariam degradados e por isso precisariam dessa nova administração, Walter afirma que eles estão apenas mal administrados. “A secretaria gastou R$ 8 milhões para criar esse projeto com uma empresa que não tem nenhuma expertise ambiental. Não falta dinheiro, falta vontade política”, conclui.
Quando perguntado sobre a importância da preservação desses parques, Walter afirma que, no atual contexto de crise climática, essas pequenas áreas podem servir de “backup”, um armazenamento de espécies nativas, para que as próximas gerações espalhem esse restinho de natureza pelo mundo. “Jogar isso nas mãos de um empresário que só quer lucrar com isso é revoltante! Eles cruzaram uma linha sem precedentes. Se isso passar, tudo é possível”.
Nota do Editor
Como é de praxe na Seama, a Assessoria de Imprensa ignora e não atende os jornalistas. Nem mesmo quando é deixado um recado com a chefe de Gabinete daquela Secretaria de Estado, para lembrar que foram enviados e-mails e mensagens por WhatsApp solicitando informações oficiais. As ligações telefônicas são ignoradas quando são originárias por jornalistas. Por esse motivo que somente saem as versões críticas dadas pelos especialistas em meio-ambiente. No caso dessa publicação da Ufes ocorreu o mesmo. No final do texto acima há esse lembrete:
“Sem respostas. A reportagem procurou a assessoria da Seama e do secretário Felipe Rigoni em busca de mais informações sobre o projeto e respostas aos questionamentos dos movimentos contrários à Peduc. Entretanto, até a publicação desta matéria, não obtivemos resposta.”