A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat) acionaram o Supremo Tribunal Federal (STF) contra resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que restringe terapias e cirurgias de mudança de gênero em crianças e adolescentes. Ainda acusam a resolução do CFM de “transfóbica”

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) Nº 7.806, protocolada nesta semana pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat) já foi distribuída pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e foi distribuída ao ministro Cristiano Zanin. Logo na inicial da ADI, as entidades pedem ao STF que revogue a Resolução CFM 2.427/2025., já que a entidade agiu com “arbitrariedade atécnica (segundo o dicionário Michaelis, “atécnica” é imperícia, inaptidão, incompetência, inépcia, ineptidão, incapacidade, inabilidade, desqualificação, inexperiência), insuficiência.que desconsidera a lógica da “medicina” baseada em “evidências.”
A Antra e o Ibrat ainda fazem críticas na página inicial da ADI à atual direção conservadora do CFM: “Desconsideração de estudos sérios para privilegiar fontes de defensores de ‘cura gay’ e ‘estudos sem credibilidade científica.’ Os atuais dirigentes do CFM, segundo as duas entidades , promovem a “ausência de diálogo, consulta e oitiva da comunidade médica brasileira, em especial médicos(as) que trabalham com crianças com ‘incongruência de gênero.’.
CFM “desconsidera o mundo real da prática clínica”, alegam as entidades
“Agir autoritário/autocrático que desconsidera o mundo real da prática clínica tal como ocorre no Brasil, que aumenta a irrazoabilidade (arbitrariedade) geradora de inconstitucionalidade, visto que o CFM invoca temor de processos em Estados norte-americanos e supostos problemas pontuais ocorridos no Reino Unido, por atendimento médico sem atenção integral a aspectos sociais, que não explica quais seriam, para ‘justificar’ a revogação no Brasil, sem constatar tais problemas por aqui”, prossegue a Antra e o Ibrat na página 2 da ADI.
No documento, as entidades ainda citam o Relatório Técnico da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), “que faz análise técnico-científica das referências e fundamentos da justificativa da Resolução CFM 2.427/2025, que demonstra que ela foi elaborada a partir de uma visão enviesada pelo paradigma da anormalidade/patologização da identidades trans, já superada pelo paradigma da despatologização, da Organização Mundial de Saúde (CID 11/2018), que se pauta com preocupação com os por ela reconhecidos como raros/pouquíssimos casos de “destransição.”
“Desprezo do CFM com crianças e adolescentes trans e pela ciência”
No final da página 2 da ADI., as entidades fazem a seguinte afirmação em relação aos atuais dirigentes do Conselho: “Verdadeiro desprezo eloquente do CFM com crianças trans e adolescentes trans, inclusive por desprezar sua própria conclusão, não infirmada agora, do Parecer CFM 8/2013, onde reconheceu o sofrimento subjetivo e os danos a crianças e adolescentes trans quando não é feito bloqueio hormonal da puberdade e hormonização a partir dos dezesseis anos e a eficácia desses tratamentos para acabar com a angústia e sofrimento delas e deles.”
E reafirmam em seguida sobre a “Inconstitucionalidade da revogação da norma médica que permitia bloqueio hormonal da puberdade a crianças trans, a hormonização de adolescentes trans a partir dos dezesseis anos e da possibilidade de cirurgia de afirmação de gênero a partir dos dezoito anos para pessoas trans adultas, desprezando as evidências científicas de que tais procedimentos trazem bem-estar psicológicosocial para crianças trans e adolescentes trans, à luz dos princípios biomédicos da beneficência e não-maleficência.”
“Violação dos princípios da dignidade humana” e “ideologia de gênero”
Outra acusação formulada pelas duas entidades contra os atuais dirigentes conservadores do CFM está essa outra: “Violação dos princípios da dignidade da pessoa humana, enquanto pessoa humana trans (CF, art. 1º, III), e da proteção integral, com absoluta prioridade, da criança, enquanto criança trans e adolescente trans (CF, art. 227). Violação da vedação do arbítrio imanente ao princípio da razoabilidade. Violação do princípio da proporcionalidade em seus subprincípios da adequação e da necessidade, por utilizar-se de meio manifestamente inadequado para perseguir a finalidade que alega perseguir, havendo meio menos gravoso objetivamente aferível para tanto (melhoria dos procedimentos que eventualmente considere insuficientes, para atender os ínfimos casos que invoca, sem jamais revogar o direito ao bloqueio hormonal da puberdade e à hormonização aos dezesseis anos.”
Na página 6 da ADI reforçam esse posicionamento: “Crianças trans e adolescentes trans têm a sua dignidade humana violada pelo ato normativo violado, porque são tratadas como coisas à disposição da ‘ideologia de gênero cisheteronormativa’ (naturalização e normatização da ideia de que a forma mais ‘natural’ do relacionamento afetivo-sexual é entre um homem cisgênero e uma mulher cisgênero) ,da maioria da sociedade, sendo instrumentalizadas para tanto, pois têm violada sua autonomia e seu valor intrínseco enquanto pessoas humanas trans, com flagrante dano à sua saúde psicológica e social a partir da lógica do dano hipotético elucubrado pela Justificativa do Conselho Federal de Medicina ao ato normativo impugnado”.
E prossegue: “Afinal, o CFM invoca supostos casos de outro país, sem sequer alegar e muito menos provar que isso ocorre no Brasil, bem como textualmente pontua receio de processos (sic!) de entidades médicas em Estados norte-americanos onde políticas reacionárias de extrema-direita desumanizam pessoas trans para negar sua existência e dignidade humana. Limita-se a citar ‘preocupações’ que são, unicamente, preocupações morais de pessoas que não aceitam a naturalidade da transgeneridade e querem evitar ao máximo que
crianças e adolescentes que se entendem como trans tenham essa sua identidade de gênero autopercebida respeitada.”

“Maioria transfóbica do CFM”
“Viola-se, assim, o interesse superior de crianças e adolescentes que entendem ter uma identidade de gênero distinta daquela que lhes foi designada ao nascer, em razão de seu genital, para privilegiar os valores morais da atual gestão do Conselho Federal de Medicina e da maioria transfóbica da sociedade, ignorando-se a lição pela qual “Interesse superior ou melhor interesse não é o que o Julgador ou aplicador da lei entende que é melhor para a criança, mas sim o que objetivamente atenda à sua dignidade enquanto pessoa em desenvolvimento, aos seus direitos fundamentais em maior grau possível”.
“O que, à luz dos princípios biomédicos da beneficência e da não-maleficência, demanda possibilitar os únicos tratamentos disponíveis para evitar o sofrimento de crianças e adolescentes que têm identidade de gênero transgênera, especialmente à luz da absoluta e inconteste reversibilidade sem danos à saúde de tais procedimentos, que não foi negada pela Justificativa do Conselho Federal de Medicina, contraposta à absoluta irreversibilidade da puberdade, geradora de profundo sofrimento subjetivo a crianças e adolescentes de identidade de gênero transgênera, que se sentem como “monstros” quando veem seu corpo se desenvolver de forma contrária à sua identidade de gênero, como os relatos de pessoas trans em geral provam cabalmente, alguns deles transcritos nesta ação.”
Na página 66 da ADI voltam a denominar de “transfóbica” a atual gestão do CFM. “Os setores social e da Medicina que negam a existência da criança trans partem da transfóbica pré-compreensão dogmática de que só seria ‘natural’ uma criança ser cisgênero, presumindo de forma absoluta, sem respaldo empírico neste mundo real, que uma criança que se identifique como trans teria sido ‘necessariamente doutrinada/ensinada’ (sic) para tanto.”
“Geralmente, são os mesmos setores que têm equivalente homofóbica pré-compreensão dogmática de que só seria ‘natural’ uma criança ser heterossexual, presumindo de forma absoluta, sem respaldo empírico neste mundo real, que uma criança que se identifique como homossexual ou bissexual teria sido “necessariamente doutrinada/ensinada” (sic) para tanto. Trata-se da desumanização homotransfóbica da pessoa humana LGBTI+ em geral e trans em especial, fruto da ideologia de gênero heteronormativa, cisnormativa e machista que assola as sociedades mundo afora e, consequentemente, no Brasil”, continua a Antra e o Ibrat.
“Ideologia que prega a naturalidade e superioridade da heterossexualidade sobre as demais orientações sexuais, da cisgeneridade sobre as demais identidades de gênero e da masculinidade sobre a femininilidade – esta é a única ideologia de gênero que existe no mundo real, como, inclusive, já reconhecido por este Supremo Tribunal Federal no histórico julgamento que reconheceu a homotransfobia como crime de racismo social, por interpretação literal dos crimes por raça, à luz dos conceitos antropológicos de raça social e de racismo social (STF, ADO 26/MI 4733, j.”
“Retrocesso social”
E concluem: “Trata-se, portanto, de retrocesso social que afeta o núcleo essencial do direito fundamental à autodeterminação de gênero das pessoas trans. Embora o princípio da vedação do retrocesso social não proíbe qualquer alteração que gere menor abrangência de determinação proteção social, veda aquelas que afetam o núcleo essencial do direito fundamental em questão. A constatação objetiva da própria Justificativa do ato normativo impugnado da existência de crianças trans demonstra que a chamada ‘incongruência de gênero’ (conceito não-patologizante) e mesmo a “disforia de gênero” (sofrimento pela incongruência de gênero) ocorrem desde a tenra idade das pessoas trans, razão pela qual o ato normativo impugnado viola o direito fundamental à proteção da criança trans e de adolescentes trans com absoluta prioridade, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana trans, pois instrumentalizá-la/coisificá-la, condicionando sua existência a um ideal cisnormativo (e heteronormativo) de sociedade.”
O que é pedido STF
- – “Que seja acolhido, de inconstitucionalidade otal ou parcialmente da Resolução CFM 2.427/2025 e efeito respristinatório total ou parcial da Resolução CFM 2.265/2019, R”
- – “Reconhecimento do valor intrínseco da identidade trans desde a infância, porque o próprio ato normativo impugnado reconhece a existência de crianças com “incongruência de gênero” (conceito não-patológico) e com “disforia de gênero” (sofrimento que gera patologia por conta do sofrimento, não pela identidade de gênero trans), reconhecendo a existência e a normalidade da criança trans e de adolescentes trans”
- – “Reconhecimento da necessidade de garantia a proteção integral, com absoluta prioridade, de crianças e adolescentes com “incongruência de gênero”, tenham ou não “disforia de gênero”, afirmando-se que o dever de cuidado integral mediante cuidados especializados é constitucional relativamente à sua aplicação para pessoas trans e crianças e adolescentes trans (com “incoerência de gênero”) na lógica de “acesso à assistência nomeada trans específica”, mediante “uma série de acessos e atenções que consideram a identidade de gênero e que incluam, também, acesso a bloqueio puberal, hormonização e cirurgias para modificações corporais” (cf. Parecer Técnico da ABMMD – Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia – item IV.1, parágrafos 28, 29 e transcrição)
- – Apelo ao Executivo, por analogia à técnica do Apelo ao Legislativo, para que o determine que o Ministério da Saúde cumpra o compromisso assumido perante a ONU – Organização das Nações Unidas, na 99ª Sessão, entre 12 e 30
- – de maio de 2025, em resposta ao questionamento ao Brasil sobre “Disponibilidade de serviços de saúde a […] crianças vulneráveis, como transgênero”, quando, no item 68 de sua resposta, informou que seria lançado o Programa de Atenção Especializada da População Transgênero (PAESPopTrans), inclusive para “aprimorar os serviços de saúde para crianças e adolescentes transgênero no âmbito do SUS”. Requer-se, ainda, que esse Apelo determine a aplicação do princípio da ADPF 787 também a crianças trans e adolescentes trans, para superar a omissão inconstitucional e inconvencional do Estado brasileiro na proteção eficiente das crianças trans e dos adolescentes trans, para que o SUS também reconheça a existência da criança trans e do adolescente trans, com necessidade de sua proteção integral, com absoluta prioridade (art. 227 da CF).
Leia a íntegra da ADI 7.806, protocolada no STF pelas entidades que representam a comunidade trans brasileira:
ACAO-DIRETA-DE-INCONSTITUCIONALIDADE-No-7806Conheça a seguir a polêmica Resolução 2.427-2025 do CFM, considerada pelas comunidades trans como sendo “transfóbica:”
Conheca-a-Resolucao-2.427-2025-do-CFM