“ O Espírito Santo, como todo o Brasil, precisa rever suas festividades e símbolos para que deixem de exaltar a colonização como um marco civilizatório e passem a reconhecer o sofrimento, a resistência e a sabedoria dos povos que aqui estavam muito antes de 1500”, diz a deputada estadual Camila Valadão (PSOL)

Nesta sexta-feira (23) é repetido em Vila Velha (ES) um ritual de enaltecimento aos colonizadores portugueses, em detrimento dos povos originários que habitavam o Espírito Santo. É a visão eurocentrista, ou seja, ainda é festejada a chegada dos dominadores europeus, como se o observador estivesse na Europa e não no Brasil. Para comemorar o domínio do colonizador sobre a população indígena que habitava o Estado, Vila Velha em a partir das 7h30 um desfile civico-militar com a presença da Marinha.
Mas, não é hora de reverter essa visão européia sobre a chegada dos dominadores portugueses e passar a ver a chegada desses estrangeiros pela visão dos povos dominados, a população indígena que habitava as terras que foram denominadas pelos europeus de “Espírito Santo”?.Sim, para a deputada estadual Camila Valadão (PSOL), em entrevista exclusiva ao Grafitti News é hora de se adaptar à realidade dos povos dominados e não comemorar a chegada dos dominadores europeus. “A colonização significou para os povos indígenas: o início de um processo de invasão, extermínio e apagamento cultural”, diz a parlamentar;

Leia a entrevista com a deputada Camila Valadão
1) Como a deputada vê essa comemoração, que chega a ter feriado municipal em Vila Velha?
“A comemoração é o reflexo de uma narrativa construída a partir da visão dos colonizadores. Ela apaga as violências cometidas contra os povos originários, que já viviam neste território muito antes da chegada dos portugueses. Precisamos pensar, de maneira crítica, essa data, questionar os símbolos que são celebrados e reconhecer o que a colonização significou para os povos indígenas: o início de um processo de invasão, extermínio e apagamento cultural.”
2) Não seria hora de reverter essa festividade e olhar a chegada dos portugueses pela ótica dos habitantes que aqui moravam: os indígenas?
“É urgente e necessário resgatar a memória e a história dos povos originários, colocando a perspectiva indígena no centro do debate. A história contada até aqui tem sido parcial e injusta. O Espírito Santo, como todo o Brasil, precisa rever suas festividades e símbolos para que deixem de exaltar a colonização como um marco civilizatório e passem a reconhecer o sofrimento, a resistência e a sabedoria dos povos que aqui estavam muito antes de 1500. Olhar a história pela ótica indígena é uma forma de justiça histórica e de respeito à diversidade cultural do nosso povo.”
3) Não seria hora de extinguir esse feriado em Vila Velha?
“Acho que o mais central é revisitarmos essas datas criticamente e não, necessariamente, extinguir o feriado. A data pode ser transformada em um momento de reflexão crítica sobre os impactos da colonização e reconhecendo sua contribuição histórica, cultural e espiritual dos povos tradicionais para o Espírito Santo.”
4) E por que as escolas do Estado ainda insistem em ensinar os alunos com a visão eurocentrista, de quem está na Europa olhando sobre a “descoberta” do Brasil e da chegada dos seus representantes ao Espírito Santo, e não a visão dos indígenas sobre a chegada dos invasores europeus?
“A desconstrução dessa lógica exige investimento na formação crítica de professores e professoras, revisão dos materiais didáticos e a construção de uma educação que dialogue com a realidade do nosso povo. Nosso mandato está comprometido com uma educação antirracista, emancipadora, que garante dos direitos essenciais e decolonial.
Por isso, temos pautado — tanto pelo mandato quanto pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Ales, da qual sou presidenta — debates fundamentais sobre o enfrentamento ao racismo estrutural nas escolas. Estamos acompanhando de perto, por exemplo, a implementação da Lei 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas instituições de ensino.
O tema foi debatido na reunião ordinária da Comissão no último dia 13 de maio, especialmente à luz do relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE-ES), o documento aponta que apenas 11% das escolas estaduais possuem ações estruturadas voltadas à aplicação da lei. Isso revela um cenário preocupante, que precisa ser transformado com urgência.
Precisamos garantir que a educação oferecida em nosso Estado valorize a identidade, reconheça a diversidade histórica do nosso povo e esse é um compromisso do nosso mandato.”

Falta de senso critico
Um dos portais de notícias tidos como sendo da grande imprensa local, fez o seguinte registro da chegada dos dominadores europeus: “O cenário em Vila Velha, em 1535, era de guerra. Os portugueses não foram bem recebidos e tiveram de enfrentar a resistência por parte dos nativos. Índios Aimorés, conhecidos pela sua selvageria, receberam os estrangeiros recém-chegados com flechas e somente cederam quando eles revidaram com canhões e armas de fogo.”. Ou seja, o autor do texto imaginou que os invasores seriam recebidos com festa.
O mesmo texto registra como se fosse normal., que com o passar do tempo os dominadores tinham como “sustento inicial da vila, que era à base da agricultura e o trabalho era escravo, utilizando-se de índios e negros.”

Pesquisadores garantem que povos originários existiam no ES há mais 7 mil anos
Os pesquisadores da Ufes Izabel Maria da Penha Piva, Mestre em História Social pelo Programa de PósGraduação em História Social das Relações Políticas e Rogério Frigerio Piva, graduado em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (IHGES) e professor de História na rede municipal em Nova Venécia.produziram um documento intitulado “Guerras e massacres: O genocídio dos povos indígenas no Vale do Cricaré”, que pode ser feito no final desta matéria em arquivo PDF.
“O território do atual estado do Espírito Santo possui vestígios de ocupação humana que foram datados de pelo menos sete milênios atrás. Sendo a Arqueologia responsável por desvendar os mistérios que envolvem a vida dos povos originários nestas terras, é um consenso de que aqui viveram grupos humanos que pertenciam a dois troncos linguísticos: o Tupi- -Guarani e o Macro-Gê”, dizem os autores do estudo. Portanto, é dificil usar a expressão simplista sob a ótica euroéia de que “o Brasil foi descoberto.”
Genocídio dos povos indígenas no Vale do Cricaré
“A chegada de Vasco Fernandes Coutinho, o primeiro donatário da Capitania do Espírito Santo, em 1535, marcou o início da conquista e colonização do atual Estado e representou um apocalipse para os povos indígenas que aqui viviam. Estes perderam seu território, sua cultura, foram massacrados, torturados, mortos e, principalmente, esquecidos no processo complexo que é a formação do povo brasileiro. No norte da antiga capitania, o mais documentado conflito ocorrido no século XVI, foi travado próximo à foz do Rio Cricaré, no início do ano de 1558, entre portugueses e os tupi”, prosseguem os pesquisadores
“No início da segunda metade do século XVI, com o avanço da conquista e colonização pelo litoral, as águas do nosso manso Cricaré (Kiri-kerê na língua tupi) tornaram-se rubras com o sangue daqueles que resistiam à escravidão e invasão de seus territórios. Tudo teve início com o agravamento do conflito com os indígenas dos arredores da Vila de Nossa Senhora da Vitória (atual Vitória) onde o donatário Vasco Coutinho, temendo ser derrotado, solicitou auxílio ao Governo Geral, na cidade de São Salvador (Bahia) a primeira capital do Brasil.”, continuam.
“Recém-chegado, Mem de Sá, assumindo como 3º Governador-Geral do Brasil, enviou seu filho, Fernão de Sá, no comando de seis embarcações e de aproximadamente 200 homens. Este, no entanto, com o objetivo de obter escravos tupis resolveu atacar três aldeias fortificadas (mareriques – fortalezas) construídas na região do rio Cricaré, retardando sua ida para Vitória. Os índios defenderam-se, porém foram derrotados nas duas primeiras, e seriam na terceira, se Fernão de Sá, estranhamente esquecido por seus companheiros e sem pólvora, não fosse flechado por eles, morrendo com mais cinco que ficaram ao seu lado na margem do rio. Dalí, a esquadra agora sob o comando de Diogo de Morim, seguiu para Vitória onde a situação já estava controlada e depois para São Vicente (no litoral de São Paulo), onde venderam como escravos, os indígenas aprisionados”, contam os pesquisadores.
A revista do Arquivo Público do Espírito Santo, Ano 6, número 11, de junho de 2022, aborda a questão dos povos indígenas do Estado detalha como foi a “doação” da capitania hereditária . “Em 1° de junho de 1534, D. João III teria expedido a carta de doação da capitania hereditária ao fidalgo Vasco Fernandes Coutinho, com a dimensão territorial descrita abaixo:
- […] cinquenta léguas de terra se começarão na parte onde acabarem as cinquenta léguas de que tenho feito mercê a Pero do Campo Tourinho e correrão para banda do sul tanto quanto couber nas ditas cinquenta léguas entrando nesta capitania quaisquer ilhas que houver até dez léguas ao mar na frontaria e demarcação destas cinquenta léguas…as quais… se entrarão e serão de largo ao longo da costa e entrarão na mesma largura pelo sertão e terra firme a dentro tanto quanto puderem entrar, e for de minha conquista “