Discursos do presidente da República, comportamento de seus seguidores e redes sociais fortaleceram o negacionismo e os grupos antivacina, contribuindo para afetar a imunização no País, segundo boletim da Rede de Pesquisa Solidária
Rede de Pesquisa Solidária/Jornal da USP
O cenário da pandemia exigiu a mobilização construtiva de autoridades públicas brasileiras, mas estudos apontam que essas ações muitas vezes foram no sentido contrário. A chegada do coronavírus não apenas requereu que o governo se movimentasse pela aquisição de vacinas – forma mais eficaz no combate ao vírus – como também que ele se apresentasse publicamente de maneira clara, transparente e científica contra um vírus que já matou pelo menos 450 mil brasileiros. Em muitos momentos, nenhum dos dois caminhos foi seguido.
Na sua edição de número 31, o boletim Covid-19: Políticas Públicas e as Respostas da Sociedade da Rede de Pesquisa Solidária analisou o alcance e profundidade dos ataques à vacina CoronaVac por parte de políticos e do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro. O imunizante é fruto de parceria entre o Instituto Butantan, órgão vinculado ao governo estadual de São Paulo, e o laboratório chinês Sinovac. Até o fim de maio, ele já havia sido aplicado em 65,6% dos brasileiros vacinados, segundo a Rede Nacional de Dados em Saúde.
O estudo revelou que as manifestações contrárias ou de ataque à vacina sino-brasileira foram maiores do que especialistas imaginavam e podem afetar a imunização no Brasil, com fortalecimento de grupos antivacina. O principal meio para a difusão desse tipo de posicionamento foram redes sociais como Twitter e Facebook e os próprios discursos do presidente.
NEGACIONISMO NAS REDES
Além de medidas preventivas, como o uso de máscara e do álcool em gel, e principalmente da prática do isolamento social, as vacinas são a principal forma de salvar vidas frente à ameaça do coronavírus. Elas também ajudam a reduzir a pressão sobre um sistema de saúde continuamente sobrecarregado pelos casos mais graves de covid-19, doença causada pelo vírus. Nesse contexto, criar o engajamento da sociedade, seja da forma que for, é imprescindível para garantir uma adesão da comunidade à vacinação e a outras formas de enfrentamento ao coronavírus, evitando, assim, boa parte das centenas de milhares de mortes que tomaram o Brasil.
No entanto, essa importante direção nem sempre foi consolidada em mais de um ano de pandemia. Com alcance expressivo, redes sociais e discursos presidenciais acabaram sendo tomados por desinformação e fake news, com alvos sendo principalmente vacinas. Especialistas da Rede de Pesquisa Solidária constataram que, entre abril de 2020 e março de 2021, cerca de 5 milhões de usuários do Twitter fizeram postagens relacionadas à CoronaVac, principal vacina administrada nacionalmente, a maioria delas repercutindo negativamente o imunizante.
O Brasil possui 14 milhões de usuários inscritos no Twitter, fazendo da rede social um importante recurso expressivo e comunicacional não só para a população em geral como também para autoridades públicas.
Seja a partir de hashtags como #VacinaChinesaNão ou #VachinaNaoPresidente ou com falácias como o fato de que vacinas interferem no material genético – mentira que alcançou quase 200 mil pessoas a partir do site periódico Jornal da Cidade Online no Facebook -, um cenário hostil em relação à CoronaVac nas redes sociais era criado.
A porcentagem de posts favoráveis a ela só foi superior ao de posts contrários justamente quando o presidente Bolsonaro afirmou que cancelaria a compra da referida vacina e que não tomaria nenhum imunizante chinês, em outubro de 2020, na semana de número 43.
Depois de associar a CoronaVac à “morte, invalidez e anomalia”, em novembro, as declarações de Bolsonaro foram sucedidas por interações contrárias à vacina chinesa, quando o presidente mostrou-se contra a obrigatoriedade de vacinação. Tudo isso mesmo quando já havia sido comprovado que, em 94% dos testes, não houve efeitos colaterais, o que já configura segurança.
O PRESIDENTE E A VACINA
Além de apurar a ação de influenciadores como Oswaldo Eustáquio, hoje preso por participação em atos antidemocráticos, que relatou um suposto esquema de suborno entre a Sinovac e burocratas chineses, e políticos como o deputado Douglas Garcia, que foi contra a obrigatoriedade da vacina, o boletim também analisou outras declarações que partiram diretamente do presidente da República.
Foram considerados 75 discursos do presidente, dentre os quais 19 faziam referência ao tema da vacinação. Entre eles, quatro citavam direta ou indiretamente a CoronaVac.
A primeira menção à vacinação veio em agosto de 2020, dois meses após o governo de São Paulo anunciar a parceria com a Sinovac para a realização de testes clínicos da CoronaVac, e pouco antes de o País chegar a 100 mil mortos pela covid-19. A partir de agosto, o chefe do Executivo mostrou preferência à vacina da AstraZeneca/Oxford, mesmo com especialistas apontando que gestores públicos devem buscar adquirir o maior número de vacinas possível, independentemente de sua origem. A vacina de Oxford foi aplicada em 32,7% da população brasileira vacinada até o fim de maio de 2021.
Em seus discursos, Bolsonaro apontou que o contrato pela vacina da AstraZeneca/Oxford previa transferência de tecnologia, o que maximizaria a produção de doses, diferentemente da parceria com a Sinovac. A afirmação foi feita em 2020. Em março de 2021, o governador de São Paulo, João Doria, anunciou que o Butantan não iria depender mais da matéria-prima importada da China para a produção de vacinas, o que seria o equivalente à transferência de tecnologia.
A QUESTÃO DA VACINA NO BRASI
Na conclusão do boletim, apontou-se que “ativistas antivacinas no Facebook, YouTube, Instagram e Twitter alcançaram mais de 59 milhões de seguidores, tornando-as as maiores e mais importantes plataformas de mídia social para antivaxxers”, segundo pesquisa do Center for Countering Digital Hate.
No Brasil, ficou comprovado que não faltaram movimentos contrários a essa que é uma solução eficaz e necessária em uma pandemia que está prestes a completar 15 meses. O tom dos ataques baseou-se em mentiras, preconceitos e descredibilização, com alegações que partiram de simples usuários das redes, influenciadores, políticos e até do presidente.
Preferindo muitas vezes fake news à ciência, posts em redes sociais auxiliaram na compreensão do comportamento da opinião pública em relação à vacina. Tudo isso em um país que é destaque negativo no número de casos e mortes causados por covid-19.
Vale lembrar que, até o dado mais recente coletado pelo boletim, há uma diferença de 12.245.280 entre o número de entregas de doses previstas até o fim de maio (58.064.516) e o de fato entregue (45.819.236). Também foram notificados atrasos no recebimento do ingrediente farmacêutico ativo devido a entraves nos embarques no aeroporto de Pequim.