1968: um ano histórico, uma geração de luta
por Francisco Celso Calmon
Reprodução: Portal GGN
No meio do caminho uma preposição e algumas reflexões e preocupações.
A Geração 68 não é nem geracional e nem presencial, ela é histórica.
Uma preposição, mesmo que por descuido, no meio do caminho, pode alterar o conceito.
Se for chamada geração de 68 estaremos trocando o conceito político pelo conceito geracional, cronológico, biológico. E nesse caso, à guisa de autoironia, nós, participantes, estaríamos nascendo no mesmo ano em que se tornou histórico. Éramos jovens na faixa de catorze a vinte e poucos anos.
Do ponto de vista geracional a Geração 68 é de 1940.
Minhas premissas serão os fatos reais, seus indivíduos e suas ações coletivas.
1968 foi considerado como o ano que não terminou. E por quê?
Não houve resistência imediata ao golpe de 64, por decisão do presidente João Goulart.
As lideranças de antes do golpe de 64 foram exiladas, cassadas, caçadas, demitidas, exoneradas, perseguidas, com intervenções em sindicatos e fechamentos de entidades estudantis e interferências em outras instituições.
Surge a partir de 1965 o inicio de resistência à ditadura através do movimento estudantil, reabrindo as entidades e realizando assembleias e tímidas manifestações públicas. Inicialmente pelo movimento dos estudantes secundários, pela minha memória, não sou historiador.
As principais entidades secundaristas já no ano de 1965 foram reabertas na marra, sem autorização legal. Entre as mais conhecidas, em novembro de 1965, a AMES do Rio de Janeiro foi a primeira a voltar a funcionar, a partir de uma Assembleia de lideranças, na sede do antigo sindicato dos metalúrgicos, em São Cristóvão no Rio. Considerada ilegal, seus dirigentes sujeitos às prisões arbitrárias. Como de fato aconteceu conosco. Fui eleito para a vice e em menos de 4 meses assumi a presidência devido a sucessivas detenções do presidente Astrogildo Toledo, numa delas fomos mais eu e o tesoureiro Tibério Canuto. Entre a viver na ilegalidade e clandestinidade, Astrogildo renunciou, em acordo com os demais membros da diretoria, e eu assumi e permaneci à frente até 17 de novembro de 1966, quando, após Congresso clandestino elegemos nova diretoria, passamos a presidência a Alan Mello, num ato de rua no Meier, RJ, cercado por forte e violento aparato policial, com prisões, repercutido na imprensa.
Em 1967 foi a vez de retomarmos à UBES.
A UNE não parou, enfrentou a ditadura.
A Lei Suplicy de Lacerda colocou na ilegalidade a UNE e as UEEs (Uniões Estadual dos Estudantes), que passaram a atuar na clandestinidade.
A luta continuou e em 1965 a UNE convoca uma greve de mais de sete mil alunos, que paralisa a USP.
A UNE enfrenta a Lei Suplicy de Lacerda e organiza passeatas nas principais capitais. A repressão violenta em BH desencadeia passeatas em outros estados.
Em 1966, mesmo na ilegalidade, é realizado o XXVIII Congresso da UNE, em Belo Horizonte.
Crescendo pelo fermento na massa estudantil, a resistência começa a incomodar a ditadura, apesar de toda a repressão.
De um lado o movimento estudantil e de outro a repressão policial-militar do regime de exceção crescem em proporções desiguais e o ano de 1968 pelos acontecimentos ocorridos vai se tornar um ano histórico.
Em 28 de março daquele ano ocorre o assassinato do estudante secundarista Edison Luís, no restaurante Calabouço, Rio, cujo presidente da Associação do local era o estudante Elinor Brito.
A significante manifestação do seu enterro, mobilizando parte expressiva da classe média, à frente artistas e intelectuais, vai impulsionar novas ações de resistência à ditadura. “Abaixo a Ditadura. O Povo no poder”, foi a grande faixa que abriu o cortejo do enterro.
A morte do companheiro Edison Luiz vai gerar indignação nacional e pipocar atos de protestos, senão em todos em quase todos os estados do Brasil. E vai num crescendo como rastilho de pólvora chegando próximo ao barril.
Não só estudantes.
Abril de 1968, operários da Belgo-Mineira realizam uma greve com ocupação da fábrica. Essa greve marca o início de uma onda de revolta operária em Minas Gerais contra o arrojo salarial.
Em 1º de maio do mesmo ano em SP os operários colocam para correr do palanque da comemoração do dia de luta do trabalhador o governador Abreu Sodré e os sindicalistas pelegos, e realizam o ato e depois saem em passeata.
Em 26 de junho de 1968 ocorre a passeata dos cem mil no Rio, com retumbantes estímulos a outras manifestações em demais partes do país.
Duas semanas após, outra passeata no Rio, quantificada pelos organizadores em 50 mil, a rigor uns 30 mil era mais realista.
Mudo de cena para enfatizar que que não era só o movimento estudantil que crescia.
Os operários, embora não se integrassem expressivamente a essas manifestações, também começavam as suas lutas reivindicatórias, com viés político de crítica à ditadura, patrocinadora do arrocho salarial.
É organizada a greve de Osasco, SP, em moldes diferentes das épocas passadas, inclusive sem piquetes.
Novas lideranças vão surgindo, entre elas, o operário torneiro-mecânico, Luiz Inácio Lula da Silva, é o novo sindicalismo surgindo.
A segunda greve de Contagem, ocorrida em outubro de 1968, foi pouco tratada pela historiografia, segundo seus participantes, foi maior em número de grevistas e de paralização.
13 de outubro de 1968, Congresso clandestino da UNE, Ibiúna, SP, descoberto, prisões massiva e de lideranças, abala a resistência, aumenta a repressão com torturas de jovens estudantes.
O ano de 1968 político não ocorria apenas no Brasil, também na antiga Tchecoslováquia e na França, os mais simbólicos do ano, mas que não foram os únicos.
França, Alemanha, Praga, Estados Unidos (4 de abril de 1968 foi assassinado o líder negro Martin Luther King), México …, acontecia uma quadra de contestação, de rebeldia ao status quo.
Maio de 68 na França, por exemplo, foi uma grande onda de protestos, iniciados com manifestações estudantis pelas reformas educacionais que evoluiu para uma greve de trabalhadores que balançou o governo de Gaulle.
A geração 68 é caracterizada, objetivamente, pelos eventos que produziu, demonstrando um caráter subjetivo de generosidade, desprendimento, coragem, ousadia, determinação, criatividade, consciência de rebeldia e revolução.
A G68 acreditava na força do povo, na necessidade da atividade de FOP – Formação, Organização, Protagonização – na base social e acalentava sonhos de um país soberano, e um mundo solidário, igualitário, livre, democrático.
Ao protagonizarem aqueles acontecimentos de resistência à ditadura brasileira, aqueles jovens produziram a sua própria história, cuja marca ficou para a História como a geração das rebeldias de 1968, aqui e alhures.
A Geração 68 não é nem geracional e nem presencial, ela é histórica. E para a História deve ficar em seu escaninho, até que os historiadores, com a devida e necessária distância temporal, deem a ela o seu real significado, como marco de um período.
Como memória faz e fará parte de cada presente, nas lembranças de efemérides, no sentido de lembrar para aprender, para referências, para fomento.
Nesse sentido a sugestão inicial, em abril, de rememorar a passeata dos cem mil estava bem posta no tempo, como um sinal, um chamamento às ruas, e a geração 68, já vacinada contra a covid-19, daria o primeiro passo, com seus decididos cordões. Ocorre que, talvez só pelo anúncio, também, os jovens tomaram a dianteira, felizmente, e foram às ruas no dia 29 de maio, aqui e em algumas partes do mundo, internacionalizando a luta contra o bolsonarismo e o genocida do planalto. Mas, como memória continua a valer. Lembrar para não repetir, recordar para incentivar.
A G68 não prossegue pelos anos posteriores, senão em fragmentos, os que vão para a luta armada, os que vão para luta institucional, os que ficam somente no FOP, os que ficam longe, nos exílios, os que ficam dentro e têm que sobreviver. Lutar e lutar, na política e para comer.
Em qualquer desses segmentos não é mais a G68, como síntese de uma maré rebelde, mas grupos. De forma que não é apropriado dizer que a geração estava na guerrilha do Araguaia, ou que foi a geração 68 que chegou ao governo petista.
Ela encerra em 1968 como um capítulo, um baliza, um símbolo, uma legenda, pois o ano não terminou, teria outro final se a ditadura não respondesse com o AI5, acabando com o que restava de liberdade democrática, instituindo o Estado terrorista.
Fomos derrotados aqui e nos demais países, cujas juventudes foram personagens dessa tentativa de mudar o mundo. Fizemos história, mas ao fim e ao cabo fomos vencidos.
Fazendo uma analogia com a seleção futebolista de 70, conquistou o tri; ela não é a de 62 e 66, mesmo que sem aquelas não haveria ela, assim como ela também não prosseguiu posteriormente, seu fim foi o seu marco – o feito histórico da primeira seleção nacional a conquistar o tricampeonato mundial de futebol.
A G68 acaba junto com os feitos históricos daquele ano, também chamado, à época, do ano vermelho mundial da rebeldia juvenil.
Esta é a moldura que faço da geração 68 no contexto mundial e nacional daquele efervescente período.
Deixa lições, carisma, áurea, essenciais para inspiração e fomento à luta dialética de todas as sociedades. E teve a lição de que a segurança não se subestima: grupos abertos e sem filtros podem ser demonstração de lição não internalizada.
As palavras de ordem que expressavam o viés prioritário de cada organização e as unificadoras daquele ano:
O POVO ORGANIZADO DERRUBA A DITADURA!
O POVO ARMADO DERRUBA A DITADURA!
O POVO UNIDO DERRUBA A DITADURA!
ABAIXO A DITADURA!!!
Os jovens de ontem não carecem de legenda para estarem presentes em manifestações públicas de hoje, de conjuntura também histórica. Não nos vejo à semelhança dos ex-pracinhas saindo em ala como fazem nas paradas de 7 de setembro.
Não precisamos de alvará, nem de rótulos, somos os idosos que se mantiveram coerentes com a própria história. E oxalá somemos em espaços e organizações unitárias em antítese à atomização do passado.
A fraternidade é vermelha, aí reside a necessidade emocional que está acolhendo a tantos no grupo Geração 68 no facebook.
Sejamos todos bem-chegados, sem extrapolar as quadras da História.
Todos juntos e misturados no dia 19/6 nas manifestações de rua pelo FORA bolsonaro, com máscara facial, álcool gel e devido distanciamento físico.
Francisco Celso Calmon é da coordenação do canal pororoca e ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça.
PS. O canal POROROCA realizará uma roda de conversa virtual no dia 20, domingo, às 20 horas, sobre a geração 68, com Jean Marc, ex-presidente da UNE, Jaime Cardoso, ex-vice-presidente da AMES, Gilney Viana, UMES-BH, e comigo, ex-presidente da AMES.