Desembargador de Brasília quis proteger a família Bolsonaro ao impor censura contra matéria jornalística, que detalha compra abusiva de imóveis pelo clã Bolsonaro, ocorrida nos 30 anos de atividade política do atual presidente. A esdrúxula decisão do desembargador não durou 24 horas
No final da noite desta última sexta-feira (24), o ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a esdrúxula censura que um desconhecido desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF), Demétrius Gomes Cavalcanti havia imposto sobre as denúncias de compra de imóveis em dinheiro vivo pela família Bolsonaro. O desembargador atendeu a pedido do filho do atual presidente Jair Bolsonaro (PL), o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e gerou amplos protestos das entidades que representam a Imprensa brasileira.
A íntegra da decisão do ministro Mendonça pode ser lida clicando neste link. Já a íntegra da matéria censurada já foi restabelecida por determinação do ministro do STF, intitulada “Metade do patrimônio do clã Bolsonaro foi comprada em dinheiro vivo” pode ser lida clicando neste outro link. A censura promovida pelo desembargador que contraria e desacata a Constituição e recentes decisões do STF, que defendem a ampla liberdade de imprensa, foi um dos assuntos mais comentados nas redes sociais desta última sexta-feira.
Na sua decisão, o ministro Mendonça, que foi um dos dois indicados por Bolsonaro para assumir o cargo no STF, reiterou a plena liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura, bem assim, a imposição, ao Poder Judiciário, do dever de dotar de efetividade os direitos fundamentais de imprensa e de informação. O ministro do STF ainda deu um “puxão de orelhas” no desembargador, em sua decisão.
“No caso em tela, alega-se inobservância, pelo tribunal reclamado, do que decidido por esta Suprema Corte quando do julgamento da ADPF nº 130/DF, ocasião em que o Pretório Excelso julgou procedente o pedido para declarar não recepcionado pela Constituição da República todo o conjunto de preceitos da Lei nº 5.250, de 1967, conhecida como Lei de Imprensa”, começou. Prosseguindo, disse: “No Estado Democrático de Direito, deve ser assegurado aos brasileiros de todos os espectros político-ideológicos o amplo exercício da liberdade de expressão. Assim, o cerceamento a esse livre exercício, sob a modalidade de censura, a qualquer pretexto ou por melhores que sejam as intenções, máxima se tal restrição partir do Poder Judiciário, protetor último dos direito e garantias fundamentais, não encontra guarida na Carta Republicana de 1988”.
“Ante o exposto, defiro o pedido liminar para determinar a imediata suspensão dos efeitos da decisão reclamada, no processo nº 0731352-94.2022.8.07.0000, permitindo-se à parte reclamante, por conseguinte, que restabeleça as matérias jornalísticas publicadas em seu site, assim como a divulgação dessas matérias em redes sociais, até o julgamento final desta reclamação”, finalizou André Mendonça.
O que diz a reportagem censurada
A matéria fala, que usou um profundo levantamento jornalístico e consultas a documentos em cartórios, expõe a compra de 107 imóveis desde a entrada de Jair Bolsonaro na política. Nesse período, os imóveis foram comprados em nomes do atual presidente, dos seus três filhos (Flávio, Eduardo e Carlos), as duas ex-mulheres (Rogéria e Ana Cristina), a mãe (Olinda) e quatro irmãos (Renato, Denise, Vânia e Solange). A montagem da matéria exigiu sete meses de investigação pela equipe de jornalistas do UOL. Nesse prazo foi constatado que a metade desses imóveis foi comprado com dinheiro vivo.
São 51 casas, lojas ou terrenos, todos pagos em moeda corrente nesses últimos 30 anos de atividade política do chefe do clã Bolsonaro. As compras, de acordo com o que foi apurado pelo UOL, totalizaram R4 13,5 milhões, que corrigidos pelo IPCA, esses valores equivalem atualmente a R$ 25,6 milhões. Entre os 107 imóveis,. Não existe clareza nos dados registrados em cartórios de como foram pagos outros 26 imóveis. O UOL visitou alguns desses imóveis no Vale da Ribeira, em São Paulo, região onde surgiu o clã Bolsonaro.
Quem é o desembargador censor
O desembargador é conhecido em Brasília de ser um notório defensor dos interesses da família Bolsonaro e de seus aliados políticos. Ainda nesta semana, Demétrius saiu em defesa da bolsonarista radical de extrema-direita, a ex-ministra e candidata ao Senado por Brasília, Damares Alves. Ele ordenou que os responsáveis pelo perfil “Brasília sem Damares” excluíssem postagens contrárias à extremista de direita. A ficha corrida do magistrado ainda consta a sua determinação em mandar soltar um traficante, apenas por ser neto do seu colega desembargador, José Jeronymo Bezerra.
Em 2012, o mesmo desembargador voltou-se contra o portal de notícias Congresso em Foco, para sair em defesa de servidores públicos federais que haviam sido denunciados por receber supersalários. Naquela ocasião, o portal, criado e é administrado pelo jornalista capixaba Sylvio Costa, produziu a matéria fundamentada em dados oficiais do Tribunal de Contas da União (TCU). Foi o mesmo desembargador que mandou soltar Laryssa Yasmin Pires, 21, acusada de ter assassinado a própria filha de dois anos por afixia e facadas no tórax.
Nota de protesto da ABI
A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) emitiu uma nota condenando a atitude inconstitucional do desembargador de Brasília, sob o título Censura é inconstitucional e que pode ser lida clicando neste link. ou pode ser lida a seguir:
A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), por meio de sua Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos, considera inaceitável a censura que está sendo imposta ao portal de notícias UOL pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), Demetrius Gomes Cavalcanti. Atendendo ao pedido do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o desembargador determinou que fossem retiradas do ar matérias do UOL sobre a compra de imóveis em dinheiro vivo pelo clã Bolsonaro – Metade do patrimônio do clã Bolsonaro foi comprado em dinheiro vivo, de autoria dos repórteres Thiago Herdy e Juliana Dal Piva.
A censura, como já deixaram claro inúmeras decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), é inconstitucional, ainda que determinada judicialmente. Como exemplo, vale lembrar a famosa frase da ministra Carmen Lúcia: “O cala boca já morreu”.
Ao censurar uma reportagem que pelos seus méritos teve ampla divulgação e mereceu elogios de diversos setores da sociedade brasileira, o desembargador não apenas contrariou decisões do STF. Mais grave, ele partiu de falsas premissas, provavelmente induzido a erro pela defesa do senador.
Entre diversos documentos, o trabalho jornalístico informou também os dados que constavam da denúncia apresentada pelo MP-RJ, que acusou Flávio Bolsonaro por um desvio de R$ 6,1 milhões, e apontou que o senador lavava dinheiro oriundo do esquema de rachadinha para aquisição de imóveis, pagamentos de despesas pessoais, impostos etc.
É certo que essa denúncia foi anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STF), mas isso decorreu por conta da forma como o juiz de primeira instância autorizou o MP a acessar os dados. Os ministros não discutiram a origem do dinheiro. Em nenhum momento, o senador Flávio Bolsonaro provou a licitude do dinheiro utilizado ou mesmo que os dados apresentados pelo Ministério Público estavam incorretos.
Diversos órgãos de imprensa também publicaram dados da denúncia ao longo de dois anos e não foram censurados anteriormente. Não é porque o Judiciário anulou a decisão que cessa o direito à informação. Especialmente, no caso de informações corretas e de interesse público.
Nesse sentido, a decisão de censurar a notícia, tomada pelo desembargador, deve ser revista imediatamente, seja por decisão de moto próprio ou pelos tribunais superiores. É preciso fazer valer o preceito constitucional de que a Liberdade de Imprensa é um direito de toda a sociedade.
Rio de Janeiro, 23 de setembro de 2022
Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Direitos Humanos
Associação Brasileira de Imprensa
Censura à imprensa por desembargador é condenada pela FENAJ
A Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) emitiu uma nota, que pode ser conferida clicando neste link onde condena a atitude do desembargador. A íntegra da nota da FEN AJ pode ser lida a seguir:
A Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) condena a censura judicial imposta ao UOL pela justiça do Distrito Federal, que determinou a retirada do portal das matérias sobre o patrimônio imobiliário da família do presidente da República, Jair Bolsonaro (PL).
Para a FENAJ, trata-se de mais um grave atentado à liberdade de imprensa no país e ao direito da população brasileira de ser informada, cometido por quem deveria zelar pela Constituição, ou seja, pelo judiciário.
No caso, chama atenção a tentativa de interdição do debate público acerca de um tema de interesse de todos os brasileiros, que envolve o candidato à reeleição e seus filhos políticos, nas vésperas do primeiro turno das eleições gerais de 2022.
A censura apareceu como o principal tipo de violação ao Jornalismo no Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa – 2021, com 140 casos, a partir do aparelhamento da Empresa Brasil de Comunicação. Além disso, a FENAJ registrou outros 15 casos de cerceamento à atividade jornalística por ações judiciais no ano passado.
A entidade espera que a decisão contra o UOL seja revista pelas instâncias superiores, sob pena de inviabilizarmos o exercício do Jornalismo, um dos pilares das sociedades que se pretendem ser democráticas.
Brasília, 23 de setembro de 2022
Federação Nacional dos Jornalistas
ABRAJI considera gravíssima a censura do UOL
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI) foi outra entidade que representa a imprensa brasileira a se posicionar contra a atitude do desembargador, que ao defender os interesses da família Bolsonaro, promoveu um violento ataque à imprensa brasileira. A nota da ABRAJI pode ser lida no portal original da entidade, clicando neste link ou lendo a íntegra a seguir:
Decisão judicial contra UOL é gravíssima e representa ameaça a toda a imprensa brasileira
O desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) Demetrius Gomes Cavalcanti censurou o portal UOL ao determinar, nesta quinta-feira (22.set.2022), que fossem retiradas do ar reportagens investigativas sobre transações imobiliárias da família do presidente Jair Bolsonaro (PL). A liminar (decisão provisória) revogou decisão anterior de primeira instância da 4ª Vara Criminal de Brasília, da última segunda-feira (19.set.2022).
O pedido de retirada de conteúdo atendeu a um pleito da defesa do senador Flávio Bolsonaro (PL), filho mais velho do presidente, no bojo de uma ação criminal movida contra os jornalistas responsáveis pelas publicações. Na decisão, o desembargador afirmou que as reportagens utilizaram informações sigilosas de inquérito policial que já havia sido anulado pelo Superior Tribunal de Justiça e informações “não submetidas ao crivo do Poder Judiciário”.
A investigação dos repórteres Juliana Dal Piva e Thiago Herdy foi publicada no dia 30.ago.2022 e mostrou, por meio de documentos, que a família do presidente comprou 51 imóveis em dinheiro vivo, de maneira total ou parcial.
A Abraji considera absurda a decisão judicial. Primeiro porque é de interesse de toda a sociedade brasileira ter conhecimento sobre transações suspeitas envolvendo familiares do presidente – entre eles, três parlamentares. Em um contexto eleitoral, a liminar é ainda mais grave, pois impede o escrutínio público, cerceia o debate e impede o exercício livre da imprensa. A reportagem não faz ilações. As informações foram extraídas a partir da análise minuciosa de documentos coletados em cartórios durante sete meses, com mais de mil páginas lidas.
A Abraji vê a decisão como um ataque a toda a imprensa brasileira. O episódio confirma o aumento do assédio judicial contra jornalistas. Segundo o monitoramento da associação, desde 2002 já são 5.641 pedidos de retirada de conteúdo. O tipo de autor mais comum registrado no projeto são políticos, com 3.245 ações.
A Abraji também avalia que a própria ação contra o UOL, que se deu no âmbito criminal, é uma violação à liberdade de imprensa. Para a associação, o caminho para discutir uma suposta ofensa à honra seria a esfera cível.
Diretoria da Abraji, 23 de setembro de 2022.