Violência brutal contra camponeses remonta à ditadura militar, mas recrudesceu com extrema direita na presidência
Reprodução de Murilo Pajolla Brasil de Fato | Lábrea (AM)
De um lado, 16 mil famílias de trabalhadores e sem-terra, organizados em luta pela reforma agrária há três décadas. De outro, uma milícia rural formada por jagunços e policiais, com orçamento de R$ 450 milhões e sob o comando do maior grileiro de terras públicas da história da região.
Esses são os dois lados da guerra desproporcional no campo em Rondônia, onde os corpos de lideranças camponesas se acumulam sob complacência das famílias mais tradicionais da política e do Judiciário.
A origem dos conflitos está na concentração fundiária promovida pela ditadura militar, que deu a apoiadores ricos do regime autorização para ocupar grandes porções de terra no estado. A chegada ao poder de Jair Bolsonaro (PL), que chamou os sem-terra de “grupo terrorista”, empoderou as milícias rurais e os latifundiários por trás delas.
Em 17 de novembro, uma operação da Polícia Federal (PF) desarticulou uma milícia rural composta por policiais civis e militares, envolvida em grande parte dos assassinatos de lideranças sem-terra em Rondônia.
Foram cumpridos 32 mandados de prisão, cinco de busca e apreensão e um de afastamento de função pública. Os nomes dos detidos não foram divulgados pela PF.
A operação da PF deflagrada neste mês confirma as denúncias feitas por movimentos populares do campo, que preveem um período de relativa diminuição da violência, pelo menos até a milícia se organizar novamente.
Assista à reportagem:
Quem é o líder:
A PF não divulgou os nomes dos envolvidos na milícia, mas o Brasil de Fato apurou que o principal líder da organização criminosa é o latifundiário Antônio Martins dos Santos, conhecido como Galo Velho.
Segundo a PF, ele seria líder de um esquema de invasão e grilagem de terras públicas, com uso frequente da pistolagem. Galo Velho já foi preso sob essas suspeitas em 2020, mas hoje vive uma vida confortável em Brasília.
Com os sigilos bancários quebrados, os investigadores descobriram que a milícia movimentou R$ 450 milhões. O valor é quase 30 vezes maior do que o orçamento da Polícia Militar (PM) de Rondônia para 2022. A quantia espantou até mesmo quem acompanha de perto as ações violentas da milícia.
“É um montante impressionante”, diz Valdirene Oliveira, ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado (DPE-RO). “Mas quando a gente vê o projeto gigantesco de grilagem que está desenhado, a gente percebe que esse valor está dentro da perspectiva para a área, que é de expansão da fronteira agrícola e de bovinocultura”, explica.
Em 2020, a primeira operação da PF que mirou Galo Velho detectou a participação do juiz federal Herculano Martins Nacif, morto em um acidente de trânsito em 2015. O magistrado dava decisões favoráveis ao grileiro em ações judiciais fraudulentas e recebimentos de indenizações com valores superestimados.
Milícia fortalecida a partir do golpe contra Dilma
Segundo a DPE-RO, essa é a primeira vez que uma investigação policial aponta a participação direta de policiais nas milícias. Os relatos de camponeses e organizações populares, no entanto, já apontavam essa realidade há pelo menos seis anos.
“A narrativa sobre a participação de agentes do estado na milícia ganhou consistência e proporção muito grandes a partir de 2016, com a mudança do governo federal”, explica a ouvidora-geral da Defensoria Pública.
A atuação da DPE-RO abrange 16,5 mil famílias que vivem em risco de despejo em Rondônia: 9,2 mil em acampamentos rurais e 7,3 mil em ocupações urbanas. Elas estão distribuídas em 62 áreas de 22 municípios. “Sem contar as que são atendidos por advogados populares ou particulares”, diz Valdirene.
Ela lembra que em julho de 2017 Michel Temer (MDB) sancionou uma lei que permitiu a concessão de títulos definitivos a grileiros de terras da União. Na prática, foi um aval para grandes fazendeiros investirem com força contra as ocupações populares em Rondônia.
Em 2021, o estado liderou o número de mortes violentas por conflitos no campo, com 11 vidas perdidas. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), os crimes ficaram sem investigação ou punição. A suspeita é que boa parte deles tenham sido cometidos pela milícia de Galo Velho.
“Os culpados não são punidos”, diz a integrante da CPT de Rondônia Maria Petronila. “Uma preocupação maior do que os assasinatos é que quem cometeu esses crimes foi a própria polícia, que dizia em seu depoimento que foi confronto. Mas a gente não via, no momento da abordagem, os policiais saírem com nenhum ferimento”, afirma.
Entre os alvos constantes da violência, estão os moradores do acampamento Tiago dos Santos, em Nova Mutum (RO), lar de duas mil famílias da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), organização sem-terra que atua no estado.
O acampamento está dentro de uma das áreas griladas por Galo Velho, dono de uma fazenda com tamanho equivalente a duas vezes a cidade de Porto Velho (RO).
Ameaça de Bolsonaro precedeu massacre de camponeses
Em 7 de maio de 2021, Bolsonaro esteve em Rondônia para inaugurar uma ponte que conecta o estado ao Acre. O mandatário fez uma ameaça que cumpriria meses depois, com ajuda da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP).
“LCP [Liga dos Camponeses Pobres], se prepare. Não vai ficar de graça o que vocês estão fazendo. Não tem espaço aqui para grupo terrorista. Nós temos meios de fazê-los entrar no eixo e respeitar a lei”, bradou o presidente.
O discurso foi presenciado por apoiadores de Bolsonaro que estavam no evento. Entre eles, o governador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), além do governador de Rondônia e coronel da Polícia Militar (PM) Marcos Rocha (União).
Em agosto do mesmo ano, uma incursão que contou com helicópteros da Força Nacional resultou na morte de três camponeses: Amarildo Aparecido Rodrigues, seu filho Amaral José Stoco Rodrigues e Kevin Fernando Holanda de Souza. Segundo denunciou a LCP, a operação teve a participação da milícia de Galo Velho.
Advogada das famílias defende reforma agrária
Segundo a advogada popular Lenir Correia, que defende as famílias do Tiago dos Santos, além das mortes, a milícia desarticulada pela operação da PF foi responsável por promover cercos aos camponeses do acampamento. Além disso, queimaram pertences das famílias, como carros, motos e residências.
“Esperamos que a União ingresse com a competente ação de retomada do imóvel com a destinação correta para o assentamento das mais de 2 mil famílias que já residem no imóvel”, afirmou ao Brasil de Fato a advogada popular.
Em Rondônia, há 20 pessoas ameaçadas de morte por integrantes das polícias e das milícias, segundo a CPT. Elas estão incluídas no programa de proteção aos defensores de direitos humanos. Uma delas é a mãe de uma das vítimas de um massacre na fazenda Tucumã, onde dois sem-terra foram assassinados por pistoleiros.
“Essa mulher tem sérios problemas psicológicos”, conta Maria Petronila, da CPT. “Ainda não apareceram com o filho dela. Sumiram. A outra vítima, queimaram o corpo dele, apareceu queimado dentro de um carro. Mas o filho dela nunca apareceu”, lamenta.
Da ditadura à grilagem
A ouvidora-geral da Defensoria Pública de Rondônia (DPE-RO) diz que a origem do conflito está nas concessões de terra dadas pela ditadura militar de 1964 a famílias ricas do Sul e do Sudeste brasileiros. “Eram famílias apoiadoras do regime”, acrescenta Valdirene, da DPE-RO.
Esses latifundiários que deram apoio político à ditadura foram autorizados a usar a terra, dentro de uma lógica de colonização da Amazônia, desde que promovessem o desenvolvimento da região, o que praticamente não aconteceu. “As famílias envolviam políticos e magistrados”, conta a ouvidora da DPE.
Ao especular economicamente com esses territórios e mantê-los sem atividades produtivas, os concessionários dos imóveis rurais descumpriram cláusulas dos contratos celebrados com a União. Mesmo assim, nunca foram penalizados e continuaram com a posse das terras.
A partir do fim da ditadura, movimentos populares, incluindo o MST, promoveram a ocupação de terras públicas improdutivas, com o objetivo de destiná-las à reforma agrária. Em resposta, os latifundiários passaram à ofensiva e deram início a um ciclo de violência no campo que perdura até hoje.
“Aqueles que conseguiram se manter com essas áreas mesmo não cumprindo as cláusulas foram os que necessariamente deram origem a essas situações de graves conflitos dentro do estado”, afirma Valdirene.
“Eles reivindicam a propriedade desses imóveis porque lá atrás a União concedeu a eles o uso do bem. Só que como eles não cumpriram essa função social, do ponto de vista jurídico, os imóveis [rurais] deveria ser retomados. Mas nunca foram”, explica a integrante da Defensoria Pública.
Outro lado
O Brasil de Fato procurou os citados nesta reportagem. A defesa de Antônio Martins dos Santos, o Galo Velho, não foi localizada. Se houver respostas, o texto será atualizado.