A análise de conflitos entre pessoas que se dizem pretas ou pardas é do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a partir de processos que tramitam naquela Corte

O acesso a oportunidades de estudo e trabalho por meio da reserva de vagas em concursos públicos e seleções para instituições de ensino – como no caso do Sisu – é um tema em constante debate no Brasil, especialmente após a aprovação da Lei 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas
A partir dessa norma, a adoção da política nacional de cotas foi difundida para que os governos estaduais criassem modelos semelhantes em suas próprias universidades. Paralelamente, novos regramentos surgiram para garantir a reserva de vagas a candidatos negros em certames do Poder Executivo (Lei 12.990/2014) e do Poder Judiciário (Resolução 203/2015 do Conselho Nacional de Justiça).
Nos anos subsequentes à publicação da Lei 12.711/2012, a sua abrangência foi ampliada para novos grupos sociais vulneráveis, até chegar à situação atual em que são contemplados pretos, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência, além de estudantes de baixa renda provenientes de escolas públicas.
Reavaliações de políticas de cotas
Algumas leis surgidas nesse período previam um prazo para reavaliação das políticas de cotas. Quanto à seleção para as instituições de educação superior, o reexame originou a Lei 14.723/2023, a qual incluiu os quilombolas e reduziu o teto de renda exigido dos estudantes mais pobres para acesso às vagas. No caso da Lei 12.990/2014 – ainda em vigor por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) –, as discussões estão em andamento no Congresso Nacional, por meio do PL 1.958/2021.
Ao longo de todo esse processo de institucionalização das ações afirmativas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem atuado para dirimir conflitos na aplicação das regras de cotas, especialmente aquelas destinadas a compensar a discriminação contra a população negra. Esta matéria reúne alguns dos julgados mais recentes da corte a respeito de divergências na identificação racial de candidatos e outras controvérsias sobre os direitos legalmente assegurados a pretos e pardos.
Autodeclaração indeferida não elimina candidato de ampla concorrência
Além de solucionar divergências jurídicas em torno das cotas, os precedentes do tribunal são levados em consideração nas discussões sobre a atualização legislativa. Um exemplo disso é o PL 1.958/2021, que incorpora a posição da corte no sentido de que o candidato pode disputar as vagas destinadas à ampla concorrência mesmo que tenha a sua autodeclaração racial indeferida.
A Primeira Turma firmou esse entendimento em novembro de 2024, ao julgar o REsp 2.105.250, de relatoria do ministro Sérgio Kukina. No caso, o colegiado anulou uma decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) para restaurar o mandado de segurança que garantiu vaga a um candidato na Escola Preparatória de Cadetes do Ar (Epcar).
De acordo com o processo, o candidato alegou que era negro, mas a banca de heteroidentificação não homologou a autodeclaração e o eliminou do certame, embora ele também tivesse obtido classificação dentro das vagas destinadas à ampla concorrência.
Kukina avaliou que o edital do concurso deve ser interpretado em sintonia com as disposições do caput e do parágrafo único do artigo 2º da Lei 12.990/2014, os quais preveem que a não homologação da autodeclaração do candidato implica apenas sua eliminação do certame em relação às vagas reservadas.
Para o relator, a análise das comissões de heteroidentificação tem certo grau de subjetividade, de modo que é natural haver divergência de opiniões diante de cada caso concreto.
“Tomando-se o princípio da razoabilidade como congruência, a não homologação de uma autodeclaração não imputa a esta, de forma automática, a pecha de falsa, sob pena, inclusive, de se estar a presumir a má-fé do candidato”, destacou o ministro.
A atuação das comissões de heteroidentificação – importantes para evitar fraudes na autodeclaração dos candidatos – é alvo de constantes questionamentos no STJ e no STF.
Candidato excluído por comissão não prevista teve vaga assegurada
No julgamento do MS 24.589, em novembro de 2020, sob a relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho (aposentado), a Corte Especial definiu que “é legal, em concurso público, o estabelecimento de critério adicional à própria autodeclaração para o enquadramento nas vagas reservadas aos candidatos negros. Isso porque o STF já decidiu que, a fim de garantir a efetividade da política em questão, também é constitucional a instituição de mecanismos para evitar fraudes pelos candidatos”.
Isso não significa, porém, que a organização do concurso seja livre para instituir uma nova fase da seleção em andamento, sem previsão no edital – ainda que a pretexto de coibir tentativas de fraude nas autodeclarações.
Em 2018, ao julgar o RMS 54.907, a Primeira Turma, por maioria de votos, assegurou vaga em cota racial para um candidato excluído de concurso por comissão não prevista no edital. Ele concorria ao cargo de analista judiciário no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e preencheu a autodeclaração como preto ou pardo, tendo sido informado de que essa condição poderia ser objeto de procedimento de verificação.
Após o candidato obter êxito nas provas, um novo edital o convocou para se submeter a uma entrevista de verificação da condição declarada, ocasião em que ele foi excluído do certame sob a alegação de que não atendia aos critérios para ser enquadrado no fenótipo justificador da reserva de vagas.
O relator do recurso do candidato, ministro Sérgio Kukina, reconheceu ser legítimo o uso de critérios subsidiários para a verificação da condição declarada, mas disse que, no caso, as regras do concurso não poderiam ter sido modificadas com o certame em andamento.
“A posterior implementação de uma fase específica para tal finalidade, não prevista no edital inaugural e com o certame já em andamento, não se revestiu da necessária higidez jurídica, não se podendo, na seara dos concursos públicos, atribuir validade a cláusula editalícia supostamente implícita, quando seu conteúdo possa operar em desfavor do candidato”, salientou o magistrado.
Regras sobre cotas se sujeitam ao princípio da vinculação ao edital
Um caso parecido, envolvendo um aluno cotista da Universidade Federal de Pelotas, foi julgado pela Segunda Turma em agosto de 2019. O colegiado manteve a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que considerou nula a exclusão do aluno por, supostamente, não se enquadrar nos requisitos estipulados pela instituição para preenchimento das vagas reservadas.
Ao analisar o processo, que tramitava em segredo de justiça, o ministro Og Fernandes, relator, verificou que o aluno foi aprovado para o curso escolhido pelo sistema de cotas, autodeclarando-se pardo. Só no ano seguinte, porém, a instituição editou uma portaria que estabeleceu o critério fenotípico para análise da autodeclaração e dispensou a avaliação de critérios relacionados à ancestralidade do declarante.