A BHP Billiton e a Vale são donas de 50% cada da Samarco, que por falta de manutenção preventiva nas represas de dejetos siderúrgicos, permitiram que ocorresse o rompimento da barragem de Mariana (MG) e trouxe prejuízos em toda a extensão do Rio Doce, até o Espírito Santo. Sem poder usar o rio, os Krenak tiveram a sobrevivência ameaçada
Nesta semana, indígenas representando a comunidade Krenak, localizada às margens do rio Doce, no município de Resplendor, em Minas Gerais, viajaram a Londres para participar de audiências preliminares com a juíza Finola O’Farrell, da Alta Corte britânica. Os indígenas participam de uma ação coletiva contra a mineradora anglo-australiana BHP Billiton, que divide com a Vale a propriedade da mineradora Samarco, responsável pelo crime ambiental que ocorreu em 5 de novembro de 2015. Nessa data houve o rompimento da barragem de Mariana (MG), liberando quase 40 milhões metros cúbicos de dejetos minerais altamente poluentes e destruiu o Rio Doce.
Os índios Krenak esperam que uma data seja marcada para o início do julgamento ainda em 2023. Segundo o noticiário da Rádio France Internacional, a advogada brasileira Ana Carolina Salomão, do escritório Pogust Goodhead, que apresentou a ação, disse que nessa fase processual os indígenas não deverão testemunhar. Mas, ressaltou que “é importante que sejam informados e entendam o que está acontecendo, especialmente porque já se passou tanto tempo, tantos anos desde o desastre, mais de sete anos, e não houve justiça.”
“Watú Nék”
Segundo o guerreiro Douglas Krenak, o Watú Nék (Rio Doce, na língua Krenak) poderia vir a ser chamado de Rio Amargo, devido ao crime ambiental provocado pela mineradora Samarco que os impediu de pescar, beber água do rio, caçar e irrigar as plantações que traziam o sustento e a sobrevivência das 126 famílias indígenas que viviam da agricultura nas aldeias Krenak. “A BHP veio ao nosso país e destruiu milhares de vidas, desrespeitou a nossa nação. Sua ganância destruiu gerações”, disse Maykon Krenak, representante da comunidade, citado pela emissora francesa.
Após o crime ambiental no Brasil, a BHP mudou a sua sede de Londres para Sydeney, capital australiana. Essa tática da mineradora fez com que o processo original, impetrado pelo escritório de advocacia, então com o nome de SPG, em um tribunal de Liverpool (noroeste da Inglaterra), em novembro de 2018, tivesse a solicitação negada porque a empresa não estava mais na Inglaterra. A ação, uma das maiores ações da história judicial britânica, reivindicava quase 5 bilhões de libras (US$ 6 bilhões).
Um ano depois, os advogados conseguiram uma moção incomum para reabrir o processo e entraram com uma apelação: em abril de 2022 na justiça da Inglaterra, que se declarou competente, mesmo com o rompimento da barreira tendo ocorrido em outro país. “Houve várias tentativas de interromper este processo nos tribunais do Reino Unido, proibindo as vítimas de ter acesso à justiça que merecem e pela qual tanto lutaram”, disse à Rádio France o advogado Tom Goodhead, principal litigante.
A BHP Billiton e a sua sócia, a Vale, argumentam que pagaram R$11,5 bilhões (US$ 2,16 bilhões) em indenizações e ajuda financeira de emergência para mais de 400 mil pessoas por meio da Fundação Renova, que administra os reparos e indenizações. No entanto, o Ministério Público de Minas Gerais estima que número de pessoas prejudicadas com o crime ambiental é muito maior e chega a 700 mil pessoas. O grupo BHP “nega as acusações em sua totalidade” e pediu autorização à Suprema Corte britânica para recorrer à jurisdição.
Os Krenak são os últimos botocudos do Leste brasileiro
Conhecidos também por Aimorés, os Krenak são os últimos Botocudos do Leste brasileiro, denominação dada pelos portugueses no final do século XVIII aos grupos indígenas que usavam botoques auriculares e labiais. Atualmente vivem numa reserva de quatro mil hectares, nas margens do Rio Doce entre as cidades de Resplendor e Conselheiro Pena, em Minas Gerais, próximo ao Espírito Santo.
“Para muita gente era só uma água que corria ali, mas para o meu povo era um borum, era um Krenak, um irmão que tomava conta da nossa saúde, da nossa religião, da nossa cultura. E essa empresa maldita que é a Vale acabou o matando. O que mais me deixa triste é que meu povo, ao longo de muitos anos, vinha alertando a sociedade sobre as maldades que estavam sendo cometidas em nosso rio, o Uatú, mas ninguém nos ouviu”, desabafou Shirley Krenak à ONG internacional Greenpeace.
Em março de 2017, a Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minhas Gerais (UFMG) divulgou o estudo “Direito das populações afetadas pelo rompimento da barragem de Fundão: Povo Krenak”, cuja íntegra pode ser lida fazendo download, em arquivo PDF, clicando neste link. Nesse documento, os pesquisadores apontam tanto violações a direitos relacionados aos impactos socioambientais e econômicos até ao direito à propriedade ancestral dos povos indígenas e o direito à manifestação do sentimento religioso e o próprio direito ao acesso à justiça, que vem sendo negligenciado.
História do povo Krenak
O nome Krenák é o do líder do grupo que comandou a cisão dos Gutkrák do rio Pancas, no Espírito Santo, no início do século XX. Localizaram-se, naquele momento, na margem esquerda do rio Doce, em Minas Gerais, entre as cidades de Resplendor e Conselheiro Pena, onde estão até hoje, numa reserva de quatro mil hectares criada pelo SPI, que ali concentrou, no fim da década de 20, outros grupos Botocudos do rio Doce: os Pojixá, Nakre-ehé, Miñajirum, Jiporók e Gutkrák, sendo este o grupo do qual os Krenák haviam se separado.
Os Krenák pertencem ao grupo lingüístico Macro-Jê, falando uma língua denominada Borun. Apenas as mulheres com mais de quarenta anos são bilíngües, enquanto os homens, jovens e crianças de ambos os sexos são falantes do português. Nos últimos três anos vêm envidando esforços para que as crianças voltem a falar o Borun. A religiosidade dos Botocudos eram os espíritos da natureza – os tokón -, responsáveis pela eleição dos seus intermediários na terra, os xamãs, com os quais mantinham contato durante os rituais e que, quase sempre, acumulavam o cargo de líderes políticos.
Os Krenak tiveram suas terras originais roubadas por fazendeiros e posseiros, com o aval do governo de Minas Gerais. Somente em 1989 que os quatro mil hectares que possuem atualmente foi restituído por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em outubro de 1989, anulando os títulos de propriedade emitidos ilegalmente pelo governo mineiro. A partir dessa data foi reconstituída a área originalmente doada pelo governo mineiro, através do Decreto 4462 de 10 de dezembro de 1920, após um demorado processo de demarcação iniciado em 1918 e concluído em 1920.