A Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales) colocou em confronto opinião de especialistas em educação e pais conservadores, que querem segregar seus filhos do convívio social em escolas, públicas ou privadas, insistindo em criar as crianças dentro de casulo através da denominada educação domiciliar. Os defensores da segregação social de seus filhos reclamam de uma “insegurança jurídica” existente atualmente, já que podem ser denunciados por abandono intelectual e evasão escolar de seus próprios filhos.
De acordo com a Ales, o Código Penal Brasileiro, estabelece que o abandono intelectual é “deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária de filho em idade escolar”. “Sou advogada, temos uma militância nessa questão do homeschooling (escola segracionistas, onde são os pais que ensinam o que querem aos filhos). Por essa questão legal, matriculamos o Isaac em uma escola e explicamos nosso perfil. A escola nos aceitou e não nos denunciou”, disse a equipe de jornalistas da Ales uma dessas mães que, por ser advogada, é obrigada a ter conhecimento da legislação existente no Brasil.
Rasgar a Constituição
Para o doutor em educação Douglas Ferrari, ouvido pela Assembleia capixaba, “o ensino domiciliar é rasgar a Constituição”. O professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) destaca que a educação é dever primeiro do Estado com acompanhamento da família. “É um direito subjetivo. Cada criança, independente dos pais, tem, ao nascer, o direito à educação. Se a mãe não matricula, pode até ser presa por abandono de incapaz. Temos que defender a escola pública, a escola comum”, aponta.
A professora da Ufes e doutora em educação Cleonara Schwartz concorda com Ferrari. “Nossos filhos, nossos estudantes, não são propriedade, são sujeitos que têm o direito garantido à proteção. A escola não tem função só de ensinar, mas também de cuidar, de proteger. A gente sabe o tanto de violência doméstica que existe. Homeschooling fere princípios da nossa Constituição Federal e promove uma segregação dessa criança, desse adolescente, em relação aos grupos que ele poderia estar convivendo na escola”, opina.
Cleonara destaca que um ensino com menos alunos não significa mais qualidade na educação. “Qualidade se dá por meio de investimentos públicos, ambiente e condições adequadas, espaço de convivências cada vez mais diversas. O homeschooling abre mão de uma série de prerrogativas que são fundamentais para oportunizar um processo educacional de qualidade, principalmente porque não há um corpo de profissionais com formação de qualidade e adequada para efetuar essa educação domiciliar.”
Convívio social
A professora ressalta ainda a importância da convivência com pessoas diferentes para a promoção da educação: “Essa educação priva os estudantes de um espaço de convivência social ampliada e, principalmente, cerceia um processo de desenvolvimento humano mediado por interações voltadas especificamente para promover o aprendizado em trocas. O ser humano aprende por meio das trocas com o diferente. O homeschooling vai formar um indivíduo que não vai ser capaz de entender as demandas dos demais. Não vivemos sozinhos. Vivemos em grandes grupos”, afirma.
Douglas Ferrari também entende que a educação domiciliar carrega uma série de problemas. Um deles, aponta, é que a educação tende a ser mais fraca. “Com a pandemia, ficou ainda mais evidente como a educação é coletiva e presencial. Houve uma perda significativa de aprendizagem. A gente aprende em diálogo com os outros. A mediação é um papel importante que o professor exerce. Ele é formado para isso. Em casa, a família não tem essa formação”, destaca.
O professor chama atenção, ainda, para a questão da violência doméstica. “Vimos na pandemia o aumento dos índices de violência sexual e violência doméstica. A maioria dos abusos acontece em casa. Essa proposta é um regresso conservador”, opina.
Projeto em debate
O projeto que regula o ensino domiciliar está sendo analisado na Comissão de Educação (CE) do Senado (PL 1.388/2022) e foi aprovado pela Câmara como PL 3.179/2012. O texto determina que, para praticar a educação domiciliar, o estudante deve estar regularmente matriculado em uma instituição de ensino, que deverá acompanhar a evolução do aprendizado e inclusive aplicar as avaliações.
Entretanto, Cleonara pondera que não se mede o processo de desenvolvimento humano apenas por resultados de testes aplicados em determinados momentos. “Processo tem que ser acompanhado devidamente ao longo do ano, não no final do ano ou apenas em alguns meses”, declara.
Outra demanda do projeto é que pelo menos um dos pais, responsáveis ou que o educador contratado tenha nível superior ou educação profissional tecnológica em curso reconhecido. No ato da matrícula escolar, ambos os pais ou responsáveis terão de apresentar certidões criminais da Justiça federal e estadual ou distrital.
Defensores da educação domiciliar são elitistas
Diante de tais exigências, Douglas Ferrari afirma que esse modelo de educação acaba se tornando elitista: “Há a influência socioeconômica. A maioria das famílias sai 5 horas da manhã e chega em casa às 18h30 muito cansada. Há também aqueles que deixam a educação dos seus filhos para terceiros, como babás e empregadas domésticas.”
Douglas questiona ainda como será essa educação para o estudante que precisa trabalhar por ser arrimo de família. “A obrigatoriedade com a gratuidade da educação é um dos pilares da modernidade”, observa. Um dos argumentos dos defensores da regulamentação da educação domiciliar é que esse modelo é reconhecido em mais de 60 países, nos cinco continentes. Douglas Ferrari alerta, porém, que o Brasil tem muitas diferenças em relação aos países que já regulamentaram o ensino domiciliar. “Não temos que olhar a realidade de outros países, mas a realidade brasileira. Nossa realidade não oferece condições para o ensino domiciliar.”