Os Institutos Sou da Paz e Igarapé ingressam com pedido de liminar pela derrubada de decretos que aumentam o acesso e reduzem o controle das armas e munições em circulação no país. Os milhares de novos registros são para atiradores desportivos, uma das categorias mais beneficiadas pelas flexibilizações de Bolsonaro e que agora podem comprar armas
Com o fim do prazo para a devolução dos processos retidos pelo ministro Kassio Nunes Marques, o único indicado ao Supremo Tribunal Federal (STF) até agora pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a decisão de o STF tomar uma posição se aproxima. O ministro indicado por Bolsonaro usou do recurso de pedir vistas, em 17 de setembro último, como forma de reter o andamento de cassação das medidas do presidente para estimular o comércio armamentista e facilitar o armamento da população civil.
Os pedidos ao STF foram feitos através das ações diretas de inconstitucionalidade 6.139 e 6.119, ambas deste ano. O autor do pedido de sustar os decretos do presidente foi o Partido Socialista Brasileiro (PSB), em conjunto com os Institutos Sou da Paz e Igarapé, Conectas, Instituto Alana e Defensoria Pública do Estado de São Paulo, organizações que são amici curiae (amigos da Corte) nos processos.
Facilitação do acesso às armas e dificultar controle
As organizações esperam que o ministro Edson Fachin, relator das ações, conceda medida cautelar para suspender imediatamente trechos considerados inconstitucionais dos decretos nº 9.845/2019 e nº 9.846/2019 ainda vigentes, reforçando que a interpretação de diversos dispositivos deve ser feita respeitando-se o Estatuto do Desarmamento. Todos foram publicados pelo governo federal com o objetivo de facilitar o acesso a grandes quantidades de armas e munições e dificultam o controle desses arsenais.
“Entramos com o pedido entendendo que há ilegalidades em outros artigos que continuam vigentes nesses decretos, que houve tentativa de fraude processual quando o presidente revogou decretos que estão em discussão no STF para que as ações perdessem o objeto, pelo risco para segurança pública com o rápido aumento do número de armas em circulação e com as ameaças de rompantes autoritários vivenciadas recentemente que ameaçam a sociedade brasileira”, comenta Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.
100 mil novos atiradores armados
As consequências da flexibilização já estão sendo sentidas e devem gerar danos pelas próximas décadas. Dados inéditos do Exército obtidos via Lei de Acesso à Informação pelos Institutos Sou da Paz e Igarapé revelam que, no período de abril a outubro de 2021, foram emitidos mais de 100 mil novos registros para atiradores desportivos, uma das categorias mais beneficiadas pelas flexibilizações e que agora podem comprar grandes quantidades de armas, inclusive as mais potentes da categoria de uso restrito. Em outubro de 2021, havia 449.190 registros ativos de atiradores no país. Em dezembro de 2018, eram apenas 133.085. Nesse período, o aumento foi de 237,5%.
“Desde o final de 2020, três medidas cautelares concedidas pelo STF suspenderam os efeitos de algumas alterações feitas pelo governo federal e que representavam grandes retrocessos na política de controle de armas e munições no país. Entretanto, graves mudanças publicadas em 2019 seguem em vigor. Elas incluem, por exemplo, o acesso a armas que antes eram de uso restrito às forças de segurança e o aumento das quantidades de armas e munições que caçadores, atiradores e colecionadores podem comprar. Em conjunto, tais mudanças representam uma ameaça para a segurança da população e para a democracia brasileira.” destaca Ilona Szabó, presidente do Instituto Igarapé.
Ministro indicado por Bolsonaro reteve as ações
O julgamento das ações havia começado em março deste ano, mas foi interrompido logo depois pelo pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Em 17 de setembro, ele acompanhou os votos dos relatores das ações, os ministros Rosa Weber e Edson Fachin, para derrubar trechos dos decretos e concedeu liminar para suspender portarias de Bolsonaro que dificultavam o rastreamento de armas. No mesmo dia, o processo foi novamente suspenso, com pedido de vista do ministro Nunes Marques.
Os votos dos ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Alexandre de Moraes, bem como as liminares por eles concedidas, são passos importantes para barrar retrocessos na política de controle de armas e munições no país, mas a nova interrupção do julgamento coloca a segurança e a democracia em risco, avaliaram os institutos Sou da Paz e Igarapé.
Presidente já editou mais de 30 atos armamentistas
Desde que passou a ocupar a presidência da República, diversas foram as iniciativas de Jair Bolsonaro para flexibilizar o controle e o rastreamento de armas e munições. A regulamentação anterior da lei de controle de armas vigorou de 2004 a 2018 com ajustes pontuais. Mas, nos últimos dois anos e meio, a política nacional relacionada ao tema foi totalmente desfigurada a partir da publicação unilateral de mais de 30 atos normativos desde que o atual governo tomou posse, em clara afronta à lei e à competência exclusiva do Poder Legislativo para alterá-la.
Esses decretos foram responsáveis pela explosão do número de novas armas em circulação quanto revogaram medidas que aprimoravam a marcação e o rastreamento de armas e munições, gerando maior dificuldade para investigar desvios para o mercado ilegal e atividades do crime organizado.
Atualmente, 15 ações tramitam no STF com o objetivo de sustar atos normativos do governo federal que representam retrocessos na política de controle de armas de fogo e munições no país.