O MPF ajuizou ação civil pública, com pedido de liminar, contra o empresário João Carlos Rodrigues Neto, para que ele seja proibido de impedir que a população utilize a praia situada na Ilha da Baleia, localizada próxima ao Farol de Santa Luzia, em Vila Velha (ES)
O dono do Posto Mobby Dick, em Vila Velha (ES) e local onde os bolsonaristas se reúnem para fazer a travessia da Terceira Ponte em atos favoráveis ao presidente Jair Bolsonaro (PL), o empresário João Carlos Rodrigues Neto, está sendo acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de se apropriar indevidamente da Praia da Baleia, na Ilha do mesmo nome. Além de ignorar o artigo 20, inciso IV, da Constituição Federal, o empresário passou por cima do artigo 10º e seus três parágrafos da Lei Nº 7.661, de 16 de maio de 1988. O MPF afirma que Rodrigues Neto ainda age com violência com quem tenta ir na praia e até mesmo se aproximar da ilha.
“O empresário, que é o foreiro legal da ilha, tem utilizado métodos ilegais – inclusive por meio de ameaças de seus funcionários e seguranças, uso de cães de grande porte, e até de atear fogo na ilha – para afastar banhistas, esportistas e a população em geral da praia, segundo a ação. Por conta disso, o MPF fez um pedido de liminar para que esse tipo de ação do empresário seja cessada imediatamente, uma vez que a praia é um bem público de uso comum do povo”, diz o órgão ministerial em nota divulgada. A Ação Civil Pública (ACP) é de número 5026757-14.2022.4.02.5001.
Denúncias alertaram o MPF sobre a posse ilegal da praia
O MPF ficou ciente da situação por meio de diversas denúncias recebidas pelo órgão. Em fevereiro de 2021, por exemplo, representações recebidas davam indícios do comportamento irregular do foreiro. Inclusive com famílias informando que “o impedimento (de utilizar a praia) era feito com a utilização de cães da raça rottweiler e ameaças verbais” do proprietário. Não se sabe como o empresário conseguiu registrar no cartório uma ilha que faz parte da história capixaba. Foreiro, ou enfiteuta, é uma pessoa ou instituição que adquire direitos sobre um terreno ou um imóvel através de um contrato, mas não é o dono do local. Ou seja, não tem a propriedade de fato.
Em uma dessas denúncias foi relatado que “o dono utiliza dois seguranças agressivos que intimidam as pessoas, até mesmo com armas de fogo; soltam dois cachorros rottweilers em cima das pessoas para expulsar da praia e colocam fogo em folhas para que a fumaça incomode embarcações que eventualmente ancorem próximo da margem da praia dessa ilha. Foram colocadas irregularmente por ele boias para que nem sequer embarcações possam ancorar na frente da ilha e aqueles que ancoram o segurança pega um barco e vai intimidar as pessoas, passa a mão na cintura indicando estar armado e manda sair da frente da Ilha”.
Irregularidades
No mesmo mês foram realizadas diligências no local, com a presença do MPF, quando constatou-se que as boias sinalizadoras continuavam no mar, gerando empecilhos à população que desejava desembarcar na praia. Um funcionário do empresário disse, na ocasião, que não havia sido autorizado pelo foreiro a apresentar a documentação que, segundo ele, permitia que as boias estivessem ali. Ainda afirmou que abordava banhistas quando “entendia que estes estavam tendo comportamento que considerasse inadequado” e chegou a dizer que, “quando os banhistas estavam ouvindo músicas em volume alto, ‘soltava’ os cachorros para que o som se encerrasse e, assim, conseguisse dormir”.
Para o MPF, o histórico das diligências realizadas demonstra claramente que o empresário não cessou as intimidações, ameaças e obstruções de acesso à praia. O proprietário, inclusive, chegou a ser autuado administrativamente pela Capitania dos Portos, o que também não foi suficiente para garantir à população ao acesso e uso pacífico da praia, até mesmo porque “nem a própria multa aplicada administrativamente pela Marinha demoveu o réu de continuar na conduta ilícita, multa, aliás, que nem mesmo foi paga por ele”.
De acordo com o procurador da República Carlos Vinicius Cabeleira, autor da ação, as praias são caracterizadas como bens públicos de uso comum do povo e, para tanto, devem possuir acesso livre e franco a elas e ao mar, em qualquer direção ou sentido. “A gratuidade decorre da própria generalidade de seu uso, pois, caso fosse oneroso, haveria discriminação daqueles que podem ou não utilizar o bem”, ressalta na ação.
Ainda de acordo com o procurador, “é inaceitável que o réu se comporte como proprietário da praia utilizando métodos muitas vezes violentos contra as pessoas que se aproximam dela, impedindo o livre acesso à praia, bem de uso comum do povo, em total afronta à legislação vigente”.
Pedidos
Diante de tudo isso, o MPF pediu à Justiça, em caráter liminar, que condene João Carlos Rodrigues Neto à obrigação de não fazer, no sentido de não praticar qualquer ação ou omissão que impeça o acesso livre e franco, a circulação e o usufruto da população em geral, da praia localizada na Ilha da Baleia; que condene o empresário a não mais atear fogo ou realizar fogueira na ilha e a não transitar com seus cães ou permitir que transitem sozinhos na praia, seja na faixa de areia ou na água do mar; que obrigue o empresário a retirar as boias de sinalização instaladas de forma irregular na praia.
Além disso, pede que seja confirmada a medida liminar e seja considerada procedente a ação civil pública, para que João Carlos Rodrigues Neto seja proibido de impedir que a população utilize a praia da Ilha da Baleia. O posto, com o CNPJ 32.467.417/0001-55, está em nome de J C Rodrigues Neto e Filhos Ltda e há cerca de 20 anos a revenda tinha a bandeira Shell. Nessa ocasião, a Shell, escoltada por oficiais de Justiça e com a Polícia junto, convocou a imprensa para assistir a retirada do seu emblema e das bombas de combustíveis, com um mandato judicial em mãos. A Shell informou naquela ocasião que o posto vendia gasolina adulterada. Desde aquela ocasião, o posto passou a ter bandeira branca.
Praias sempre foram livres para uso comum do povo
Os manuais jurídicos estão repletos de ensinamento de que as praias não podem ter um dono. O jurista Clóvis Beviláqua lembra que as leis romanas destacavam as praias são coisas comuns a todos (res communs ominium), permitindo, que fossem feitas construções somente além da praia. A Ordem Regia de 1º de setembro de 1726, do Reino de Portugal, proibia expressamente que alguém construísse nas praias, demonstrando a natureza jurídica desse bem público. Nessa Ordem havia o Aviso acrescentado em 10 de novembro de 1818, que declara que “15 braças da linha d”água do mar, e pela sua borda, são reservadas para servidão pública.”
No direito brasileiro, o Decreto n. 6.617, de 29 de agosto de 1907, já dispunha sobre os terrenos de marinha e especificamente sobre a utilização das praias, proibindo, claramente, construções nos Terrenos de Marinha e, por conseguinte, nas praias. O Decreto n. 19.197, de 31 de outubro de 1923, previa, em seu artigo 207, que “é proibido fazer qualquer construções, aterros e obras sobre o mar, rios e seus braços, sobre os terrenos de marinha aforados ou não e nos reservados para a servidão pública, sem audiência da Capitania, que só a concederá depois de verificar se tais obras não prejudicam os portos e sua navegação, rios e lagoas, ou obras projetadas pelo Governo, nem danificam os estabelecimentos da União”.
Atualmente, a Constituição Federal dispõe, no artigo 20, inciso VII, que são bens da União os terrenos de marinha e seus acrescidos, e no inciso IV, as praias marítimas, de modo que não há dúvida quanto à natureza jurídica das praias no atual regime constitucional: são bens titularizados pela União, mas que, em verdade, são de fruição universal, e não restrita, bens de uso comum do povo. A mesma garantia de que a praia não pode ter dono no Brasil está no artigo 10º e seus três parágrafos da Lei Nº 7.661, de 16 de maio de 1988.
Empresário já teve pedido de aforamento da ilha negado
Em 10 de julho de 2008, a 8ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2ª Região), por unanimidade, negou o pedido feito pelo empresário, através do processo 2004.50.01.012700-9, onde pretendia que fosse reconhecido o direito ao aforamento de área localizada na Ilha da Baleia, que abrange terreno acrescido de marinha de aproximadamente 19 mil metros quadrados. “A intenção do cidadão era que fosse lavrado o contrato de aforamento”, diz o processo. Para ver os detalhes, é só clicar neste link.
A decisão do Tribunal se deu em resposta a remessa necessária e apelação cível apresentada pela União contra a sentença de 1o grau que havia sido favorável ao empresário. “O cidadão alegou, nos autos, ser detentor do direito preferencial sobre a referida área. No entanto, o relator do processo no TRF, desembargador federal Poul Erik Dyrlund, citou, em seu voto, o artigo 64 , parágrafo 2o , do Decreto-Lei 9.760 de 1946 (que dispõe sobre os Bens Imóveis da União), para justificar o entendimento de que a concessão ou não do aforamento é ato discricionário da União Federal, em nada interferindo, eventual preferência”.
De acordo com o referido artigo, os bens imóveis da União não utilizados em serviço público poderão, qualquer que seja a sua natureza, ser alugados, aforados ou cedidos. No entanto, o parágrafo 2o estabelece que o aforamento se dará quando coexistirem a conveniência de radicar-se o indivíduo ao solo e a de manter-se o vínculo da propriedade pública. Também chamado de enfiteuse, o aforamento é o direito de pleno gozo de imóvel do poder público mediante a obrigação de não deteriorá-lo e de pagar um foro anual. O valor da taxa anual é fixado pelo Decreto-Lei 9.760 /46 em 0,6% do valor do domínio pleno do imóvel (que corresponde ao valor de mercado).
Já condenado por riscar veículo de desafeto
Há no Judiciário capixaba, o Processo criminal de número, 0033354-82.2018.8.08.0035 – Ação Penal – Procedimento Ordinário, onde João Carlos Rodrigues Neto foi condenado, por reincidir em crime de danificar veículos de terceiros com arranhões. A condenação foi de seis meses e 10- dias de detenção e ainda levou uma multa no valor de 1/30 do salário-mínimo vigente à época dos fatos. A ação criminosa teve testemunhas e imagens de câmaras de segurança. Para ler o processo criminal é só clicar neste outro link.
Segundo o que consta no processo, no dia 17 de Agosto de 2018, na Rua Ceará, n.º 225, Praia da Costa, Via Velha (ES), ao lado do posto Mobby Dick (de sua propriedade), o dono do posto e da Ilha da Baleia, por volta das 17 horas, “por motivo egoístico, utilizando-se de objeto rígido pontiagudo, produziu, de forma dolosa, as marcas de riscos desenhados na lataria do Veículo automotor modelo Volvo XC60, de cor preta, placas ODS 5203, causando, com sua ação, as avarias descritas no Laudo pericial 15.055/2018, fls. 48/52 dos autos, trazendo prejuízo considerável às vítimas, no valor de, aproximadamente, R$ 8.000,00”.
A importância histórica da Ilha da Baleia
Em 1929, a Ilha da Baleia, que fica em frente a Praia do Ribeiro, integrava um sítio histórico que tinha o nome de Maria Grinalda e incluía onde atualmente se encontra a residência oficial do governador do Estado, o Centro de Reabilitação da Praia da Costa e ia até a Pedra da Caiçara, onde se encontra o Clube Libanês. O acesso sempre foi livre nas décadas de 1920 e 1930 as famílias iam na Praia da Serei, na Ilha com o mesmo nome.
A Ilha da Baleia possui um poço de água potável, e naquela época era um lugar onde as famílias gostavam de passar um domingo. Além da água potável, o local era utilizado para pesca e coleta de mariscos. A ilha também conhecida como Ilha de Xuxa (porque há uma lenda de que a apresentadora se interessou pelo local) e Ilha da Praticagem ou dos Práticos, por ter sido utilizada durante muitos anos pela Capitania dos Portos, como abrigo e ponto de apoio aos práticos que nela aguardavam ordens para conduzir o navio que chegava, desde a barra até o porto de Vitória.
A ilha foi estratégica na colonização
No período do Brasil Império e Colônia a Ilha da Baleia foi considerada como ponto estratégico para defesa da Capitania, e por isso, e daí vem o seu valor histórico. Nos registros da História do Espírito Santo consta uma carta datada de 28 de setembro de 1735, onde o então presidente da Capitania do Espírito Santo, Silvestre Cirne da Veiga, escreveu ao Rei de Portugal sugerindo que: “para defender a entrada desta barra, a natureza a fez de sorte que me parece que com duas fortalezas ficará em termos de defensa…uma delas, e, a mais importante me parece se deve fazer em um ilhote que chamam de Baleia”.
Na carta ao rei português, foi narrado que a Ilha da Baleia “fica junto da entrada da barra, o qual ilhote tem de comprido oitenta e cinco braças… a comunicação da terra firme para o ilhote, com a circunstância que podem entrar e sair soldados sem serem notados dos navios por onde a artilharia do inimigo não pode fazer dano… Este tal ilhote tem dois morros separados um do outro, no meio fica uma baixa muito funda e nela um poço de pedra que a natureza obrou, bastante fundo com água doce que se supõe é nativa”.