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Estudo analisa a crueldade da elite de São Mateus (ES) no comércio e tortura de escravos


No passado, a elite burguesa mateense conseguiu enriquecimento às custas do comércio e exploração de seres humanos, usados como escravos, e que ainda sofriam com chicotadas, espancamentos rotineiros e estupros


Estudo analisa a crueldade da elite de São Mateus (ES) no comércio e tortura de escravos. Embaixo o terminal portuário em 1914 | Foto: Arquivos/Reprodução

A elite econômica de São Mateus (ES), no seu passado longínquo, teve a sua existência marcada por praticar torturas sistemáticas e constantes nos negros sequestrados na África e desembarcados no porto daquela cidade do Norte do Espírito Santo. A invasão portuguesa em São Mateus se consolidou em 1544, quando efetivamente os europeus se apropriaram das terras indígenas.

A historiadora Maria do Carmo de Oliveira Russo fez um estudo para a USP intitulado “A escravidão em São Mateus (ES): Economia e Demografia (1848 -1888”. A análise teve como orientador, o professor da USP Horacio Gutiérrez. “O presente estudo tem por finalidade abordar aspectos demográficos e econômicos da escravidão em São Mateus, região do norte do Espírito Santo, na segunda metade do século XIX”, inicia no resumo do documento.

Ela lembra que o porto da vila de São Mateus (cidade a partir de 1848), é considerado um vetor de desenvolvimento por onde escoava a produção agrícola regional, principalmente a farinha de mandioca e, posteriormente, o café, abrigando também um ativo mercado de escravos”, inicia no resumo do documento.

Média de preços de escravos comprados e vendidos por ano em São Mateus (1863-1887)

Compra, venda, hipoteca, doações e até aluguel de escravos

Para que o estudo fosse fiel à realidade, Maria Russo narra que consultou e analisou documentos cartoriais da cidade -livros do Notariado ou Livro de Notas – no Cartório de 1º. Ofício, onde se encontram registros de alforrias, de compra e venda, hipotecas, doações, aluguel de escravos, dentre outros, relativos ao período de 1863 a 1888.

São Mateus (ES) em 1914, com um navio vapor atracado | Foto: Arquivo/Revista Fon-Fon, edição 28

O negro sequestrado em suas aldeias na África, trazidos pelos portugueses, era tido como uma mercadoria, que exigia registro em Cartório. “O comércio de escravos figurou como mais um elemento na estrutura comercial que se montou em São Mateus ao longo dos anos. Este comércio não gerou fortunas no século XIX naquela região, apenas fez parte delas, ou gerou possiblidades de outros investimentos quando as negociações revertiam em dinheiro”, assinala a historiadora.

Documentos avulsos – negócios com escravos em São Mateus (1863-1887

Ela conta como os tabeliães de São Mateus se prestavam a ser cumplices da barbárie de compra e venda de seres humanos, fazendo o registro, em documento “oficial”, do que nos dias de hoje é um crime contra a humanidade. “Sendo assim, constatamos que as escrituras públicas de compra e venda de escravos da segunda metade do século XIX apresentam geralmente a mesma estrutura textual, contendo, de forma sequencial, os seguintes dados e informações:”

  • ,a) nome do cativo, nome do vendedor, nome do comprador, valor da comercialização;
  • .b) data de emissão, lugar onde é lavrada;
  • .c) endereço do vendedor e do comprador;
  • .d) nome, sexo que é inferido do nome, origem, cor, idade, naturalidade, estado civil e profissão/ocupação do escravo;
  • .e) observações quanto à forma de quitação, informes sobre o recolhimento do imposto de meia sisa – paga pelo comprador que, no ato, apresenta a certidão da meia siza emitida na Coletoria. Meia siza era um imposto cobrado pelo Império sobre a negociação de seres humanos escravizados e o texto deste Alvará, de 3 de junho de 1809, pode ser conferido clicando aqui
  • .f) nome das testemunhas, quando existentes;
  • .g) pessoas que assinam a rogo das partes contratantes, quando estas têm impedimentos;
  • .h) fecho do tabelião e assinatura.
Idade dos escravos comprados e vendidos em São Mateus (1863-1887)

Comércio de escravos contou com 15 empresas em São Mateus

Além dos comerciantes individuais de seres humanos negros escravizados, a elite econômica de São Mateus vislumbrou a necessidade de criar empresas especializadas nesse tipo de comércio. A historiadora fez um levantamento minucioso e conseguiu identificar que a partir de 1863, haviam 15 dessas firmas atuando no mercado de São Mateus. São elas:

  • .1 – Alves, Ferreira & Cia;
  • .2 – Faria & Bastos;
  • .3 – Fonseca, Rios & Cia;
  • .4 – Fundão & Irmãos;
  • .5 – Faria, Cunha & Cia;
  • .6 – Fundão Júnior & Cia;
  • .7 – Guimarães, Gaiato & Cia;
  • .8 – José Joaquim Almeida Fundão & Cia;
  • .9 – Leonel Joaquim de Almeida Fundão & Cia;
  • .10 – Luis José dos Santos Guimarães & Cia;
  • .11 – Morgado, Rios, Guimarães & Cia;
  • .12 – Rios & Cia;
  • .13 – Veiga & Cia;
  • .14 – Simões, Faria & Cia; e
  • .15 – Joaquim Lopes & Irmão.

“Entre estas, ao que nos foi possível averiguar, a Faria, Cunha & Cia é uma das primeiras firmas comercializadoras de produtos agrícolas e escravos da região, que, embora sediada no Rio de Janeiro, tinha como espaço de atuação o porto de São Mateus. Esta firma era composta pelos sócios Manoel José de Faria e Reginaldo Gomes da Cunha, respectivamente, irmão e cunhado do fazendeiro escravagista Antonio Rodrigues da Cunha, que devido a sua relevância econômica ganhou como agrado do imperador da época o título de “Barão de Aimorés.”

Na lista de maiores credores nas negociações de escravos em São Mateus (1863-1887) consta em 3º lugar o escravagista Barão de Aimores

O escravocrata que virou barão

O escravagista Antônio Rodrigues da Cunha ganhou o título de Barão de Aimores através de decreto imperial de 24 de agosto de 1889, aos 55 anos de idade. O título era comum ser dado pelo Império às pessoas ricas, como uma troca de favor, garantindo assim o apoio político da elite econômica ao regime imperial. Ele veio a falecer em São Mateus no dia 30 de setembro de 1893. Ele foi o pioneiro na produção de cana-de-açúcar naquela região e mudou de ramo, para o plantio de café, com o fim da escravidão.

Com o café passou a usar a mão-de-obra barata de imigrantes, principalmente de italianos, em um sistema de meeiro, onde os seus trabalhadores reclamavam porque o preço pago pela “meia” era irrisório e muito abaixo do mercado. O escravocrata também foi major da Guarda Nacional Imperial.

Imagem do escravagista Antônio Rodrigues da Cunha, o Barão de Aimorés | Imagem: Museu Histórico Municipal de São Mateus

“O major Antonio Rodrigues da Cunha também se destaca neste sentido, considerando que o mesmo se encontra em 3º lugar dentre os maiores credores nas hipotecas e penhoras (onde investiu cerca de 23:000$000 rs./ 23 mil contos de réis e aceitou 18 escravos como parte das garantias dos empréstimos), sobressaindo-se como o maior comprador de escravos em São Mateus, além de ocupar a 10ª posição entre os maiores vendedores de escravos no âmbito regional”, assinala Maria Russo.

Ilustração atribuída à princesa africana Zacimba Gaba, sequestrada e transformada em escrava em São Mateus | Imagem: Arquivo

Escravocratas de São Mateus torturaram e escravizaram princesa africana

As histórias da elite econômica do passado de São Mateus são de arrepiar. Um dos casos que passou a ser conhecido nacionalmente foi o sequestro, em 1690, de Zacimba Gaba foi uma princesa da nação Cabinda, em Angola. Essa região africana foi dizimada pelos bárbaros comerciantes de seres humanos portugueses. A princesa veio parar em São Mateus, onde foi comercializada.

O comprador foi o escravocrata português José Trancoso, que se apropriou de uma área imensa de Norte do Espírito Santo, ultrapassando o Rio Mucuri, que segundo relato de uma publicação da Ufes sobre a princesa africana, as terras desse escravagista ultrapassavam 30 Km de distância a partir de São Mateus. Uma pessoa maligna, José Trancoso praticava chicotadas e espancamentos diários contra a princesa e o seu povo, que havia sequestrado juntos.

Ao se referir a compra da princesa, o historiador capixaba Maciel de Aguiar faz o seguinte relato na sua publicação Zacimba Gaba – Princesa, Escrava e Guerreira: “O fazendeiro português José Trancoso arrematou, no Porto da Aldeia de São Matheus, na Capitania do Espírito Santo, “com cerca de mais de uma dúzia de negros d’Angola”, uma “negrinha de feições finas e olhos esfumaçantes”, sem imaginar, por certo, que estava levando para a sua fazenda – uma sesmaria de terras que ultrapassava o rio Mucuri, “há umas seis léguas para o norte” – a “negrinha” que iria ser uma das precursoras nas lutas dos negros contra o regime de escravidão na região.”

Os relatos históricos contam que durante anos Zacimba foi cruelmente castigada pelo escravagista José Trancoso por não aceitar atender os desejos do fazendeiro. Um dia, ela foi arrastada da senzala até à Casa Grande, onde foi interrogada pelo senhor, que queria saber se era verdade o boato que se espalhava por todos os lugares de que ela era uma princesa.

Depois de dias e muitas chibatadas, ela confessou sua verdadeira identidade: Zacimba Gaba, princesa da nação de Cabinda. E foi estuprada depois disso. Com o passar do tempo, a jovem princesa, aprisionada na Casa Grande, sob ameaça permanente, castigos e sendo violentada pelo fazendeiro e pelo capataz, crescia e tomava coragem para enfrentar, sozinha, o senhor. Ela tinha proibido que os negros tentassem libertá-la e passou a elaborar planos de fuga e de vingança. Zacimba também sofria ao ouvir os lamentos de seu povo sendo cortado no chicote, amarrado no tronco e levado aos ferros, durante os anos que se passaram.

Uma das armas mais poderosas e silenciosas que os escravos usavam contra os senhores ou feitores que lhes impunham castigos desumanos e humilhantes era o envenenamento. Um dos venenos mais utilizados pelos escravos era extraído da cabeça da “Preguiçosa”, uma cobra temida pelo seu veneno mortal, característica do Vale do Cricaré.

Mosaico da Ufes em homenagem à princesa africana Zacimba Gaba, na sua lutas conta o antiracismo | Imagem: Divulgação/Ufes

Esse veneno era usado por matar com pequenas doses e não logo que ingerido. Os senhores daquela época, até pegarem confiança em quem preparava a comida, obrigava os escravos a experimentarem tudo primeiro. Se não acontecesse nada, o senhor comia. Para não envenenar ninguém do seu povo, Zacimba levou anos para conseguir finalizar o seu plano. Um dia aconteceu, o senhor da fazenda caiu envenenado, e logo Zacimba deu a ordem para os escravos da senzala invadirem a fazenda. Todos os torturadores foram mortos e a família do senhor da fazenda foi poupada. Zacimba fugiu junto com os outros negros e criou seu próprio quilombo.

Zacimba Gaba é considerada uma heroína por ter enfrentando o escravagista torturados e de o derrotar. Por isso, o campus da Ufes em São Mateus a homenageia na luta antirracista. Com os dizeres “Liberdade e Consciência”, a Ufes mantem na frente do Restaurante Universitário do campus daquela cidade o mosaico que simboliza o compromisso da Universidade com a defesa e o respeito às diversidades étnico-raciais, de gênero, culturais, sociais e regionais.