Em audiência pública recente na Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales) gestores públicos e profissionais de saúde relataram que a desinformação provocada por notícias falsas atrapalha a tomada de decisões pelas pessoas e a implementação de políticas públicas pelo Estado
A redução dos índices de imunização de crianças contra diversas doenças no Espírito Santo foi destacada pelo secretário estadual de Saúde, Nésio Fernandes, em prestação de contas na Assembleia Legislativa, reacende o alerta sobre o impacto das informações, principalmente as falsas, nas políticas públicas de saúde.
Em recente audiência pública realizada na Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales) Nésio apontou a queda da cobertura vacinal de crianças até um ano de idade, se comparados os últimos quadrimestres de 2020 e 2021. A cobertura da vacina pneumocócica caiu de 85,71% para 74,68% no período; a pentavalente foi de 86,93% para 70,99%; a da poliomielite, de 81,12% para 70,68%; e a tríplice viral de 85,79% para 72,62%. Para todas elas, a meta é de 95% de cobertura.
Gestores públicos e profissionais de saúde atribuem a queda da cobertura vacinal no Estado e no país a um movimento de fake news (notícias falsas) que se propagou durante a pandemia envolvendo o combate à Covid-19 e a imunização contra essa doença. Esse debate foi reaquecido este ano, com o início, em janeiro, da vacinação de crianças entre 5 e 11 anos no país. Especialistas alertam para os efeitos prolongados da desinformação na sociedade e as ameaças que ela traz para saúde pública. As fake news ainda prejudicam a democracia, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF).
Desinformação leva à morte
“A desinformação leva à morte”, alerta a epidemiologista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Ethel Maciel, pesquisadora, amplamente reconhecida por seu trabalho de divulgação científica sobre a Covid-19. “Essas informações falsas que circulam muito rapidamente impactam na decisão das pessoas pela tomada ou não de medidas de prevenção. Por exemplo: utilização de máscaras, vacinação, utilização de medicamentos que não são eficazes. Isso coloca em risco a vida das pessoas”, exemplifica.
Um estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), dos Estados Unidos, que analisou o Twitter, demonstrou que as notícias falsas têm 70% mais chances de serem retuitadas do que a verdade. Study: False news spreads faster than the truth (Estudo: falsas notícias se espalham mais rápido do que a verdade).
“Mentira chega antes da vacina”
O subsecretário estadual de Vigilância em Saúde, Luiz Carlos Reblin, conta que, na imunização dos povos indígenas contra a Covid-19, o cacique de uma das aldeias visitadas pela equipe da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) disse a ele que “a mentira chega antes da vacina”.
“Ele ilustrou bem. Ele disse: ‘eu ajudo, eu acompanho, mas quando a gente chega para vacinar o indígena, a fake news já chegou’. E aí eu preciso fazer um convencimento, trabalhar, informar. A mentira chega antes porque ela é disseminada nas redes sociais. Isso, de fato, leva a um desgaste maior das equipes de saúde da família, porque não é mais só aplicar, é convencer alguém de que aquela vacina não faz mal, pelo contrário, faz muito bem à saúde”, relata Reblin.
Medo e nojo
A pesquisa do MIT aponta maior ritmo de propagação das fake news: elas chegam às primeiras 1.500 pessoas seis vezes mais rápido do que as notícias verdadeiras. Para os pesquisadores, tal velocidade se deve à “hipótese da novidade”, considerando que as pessoas estão mais propensas a compartilhar “informações novas”, status em que muitas vezes se apresentam as fake news, ao utilizar termos como “recente” e “inédito”. Ao contrário da verdade, as fake news, segundo o instituto norte-americano, geram respostas negativas, como medo e nojo.
E é esse o grande impacto das notícias enganosas na saúde das pessoas. Elas atrapalham na tomada de decisão pela população e também na implementação das políticas públicas pelo Estado.
Um relatório elaborado pelo Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCE-ES) apontou que a imunização das crianças contra a Covid-19 no Espírito Santo está abaixo da meta e é desigual entre os municípios.
Apesar de não ter sido possível concluir os motivos exatos, a análise técnica e o relato dos gestores públicos apontam que a primeira causa é “a disseminação de informações falsas (fake news), que estariam provocando receio infundado dos pais para levarem seus filhos a vacinar”.
A meta da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) é imunizar 90% das crianças contra a Covid. Todavia, a taxa de vacinados com a primeira dose está em 50%. E apenas 23% das crianças de 5 a 11 anos estão totalmente vacinadas (dados do site Vacina e Confia, em 5 de maio de 2022).
Fake news da vacina é mais voltada para crianças
O subsecretário Reblin confirmou que as notícias falsas sobre a vacina realmente têm prejudicado a imunização nessa faixa etária. “A fake news na vacina está mais voltada para a criança, que a vacina vai trazer algum problema de saúde para a criança e aí, como todo mundo tem uma sensibilidade maior voltada para a questão da criança, a gente percebe que tem uma dificuldade maior de superar essa informação”, explica.
Para a epidemiologista Ethel Maciel as fake news sobre a vacina da Covid impactaram também a imunização contra outras doenças. Visão essa compartilhada também pelo secretário estadual de Saúde, Nésio Fernandes, ao analisar a queda da cobertura vacinal em crianças nos últimos meses de 2021.
“Nós podemos identificar que a cobertura vacinal do último quadrimestre de 2020 das vacinas de rotina foi melhor que a do último quadrimestre de 2021. A diferença foi que, no último quadrimestre de 2021, toda uma operação, toda uma máquina de desinformação que estava combatendo tanto a vacinação infantil quanto a vacinação contra a Covid-19 também afetou as outras vacinas”, disse o secretário em entrevista após a audiência pública na Ales.
“O espalhamento de notícias falsas sobre as vacinas, sobre efeitos das vacinas, sobre o que as vacinas causavam, acabaram impactando não só a vacina contra a Covid, mas as outras vacinas no Brasil também, que tiveram sua cobertura vacinal bastante diminuída. Então, são problemas que serão duradouros. Esse enfrentamento dessas notícias e desse espalhamento de notícias falsas vai perdurar muito depois da pandemia. E o que a gente vai ter de impacto disso vai além da pandemia”, opina Ethel Maciel.
Infodemia
Essa intensidade de notícias, tanto verdadeiras quanto falsas, sobre a pandemia de Covid-19 foi classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como infodemia. O professor Adauto Emmerich Oliveira, coordenador do Observatório de Saúde na Mídia do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Ufes, apresentou dados de março de 2020, logo no início da pandemia, que já demonstravam o excesso de informações sobre o tema na internet.
“Segundo dados da OMS, 361 milhões de vídeos foram carregados no YouTube entre fevereiro e março daquele ano (2020) com a classificação covid-19 (…). Cerca de 19,2 mil artigos foram publicados no Google Scholar (Google Acadêmico). Então, quase 20 mil artigos, quase 400 milhões de vídeos. E cerca de 550 milhões de tweets continham os termos coronavírus, covid-19 e pandemia”, relata.
“A OMS, diante dessa enormidade de informações que começou a circular, começou a perceber que tinham informações que eram adequadas e que não eram adequadas, ou seja, que eram notícias falsas e notícias corretas sobre saúde. Então ela criou um termo que é infodemia, ou seja, uma epidemia de informações. E também a desinfodemia, ou seja, essa desinfodemia era uma desinformação, uma epidêmica desinformação”, explica o professor.
Opinião x ciência
Para ele, uma das maiores dificuldades, além do excesso de informações falsas circulando nas redes, é a tendência das pessoas em acreditar em opiniões em detrimento do conhecimento científico. “O que acontece é que a imaginação da pessoa, a maneira de ela compreender, ela vai muito atrás de opiniões. Então, ela abandona a razão científica e isso acaba criando monstros”, comenta.
O professor acredita que é preciso que a população brasileira tenha uma alfabetização em ciência e em saúde para saber separar o que é opinião do que é conhecimento científico. “Ela precisa conhecer mais, porque quando ela tem que ler uma notícia para ela entender, ela acredita muito em opiniões. Opinião de uma pessoa não é uma evidência, não é um conhecimento científico embasado. ‘Ah, mas ele é médico, ele é doutor na universidade lá de não sei aonde’. Não importa. O importante é um conhecimento científico embasado”, reforça.
Para a colega de universidade Ethel Maciel, a pandemia conseguiu fazer uma aproximação das pessoas da ciência. “Eu acredito que a ciência e os cientistas deram uma resposta muito positiva durante essa pandemia, informando, fazendo divulgação científica. Eu, por exemplo, nunca pensei que conceitos epidemiológicos que a gente discutia na sala de aula, nos meios acadêmicos, fossem estar na boca das pessoas”, relata.
“Eu penso que esse foi o lado positivo desse debate e eu acredito que tanto cientistas quanto imprensa tiveram um papel muito importante na veiculação de informação correta, informação de qualidade. Eu acho que isso foi um grande ganho que nós tivemos. A ciência ficou muito mais próxima das pessoas. Eu vejo que, apesar do movimento antivacina, do movimento negacionista, a reação foi muito maior e mais positiva”, salienta.
Onde verificar
Além da busca de informações em canais oficiais de instituições como universidades, o Instituto Butantan, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre outras, existem páginas na internet onde é possível verificar a veracidade de notícias, como a Agência Lupa, o E-farsas, o Fato ou Fake, e até mesmo sites especializados em checagem de notícias na área da saúde, como o da revista Veja Saúde. O fundamental é não repassar nada que não se tenha certeza, especialmente quando se trata de saúde, pois os estragos são grandes, como se viu na pandemia. “A gente não tem um indicador que a gente possa medir exatamente (…) mas é muito provável que nós tenhamos perdido muitas vidas por uma desinformação ou uma informação equivocada. Isso, sem dúvida nenhuma, ainda vai ser analisado do ponto de vista científico (…). E quando as pessoas tiverem condição de passar a fazer pesquisas qualitativas para cada caso, para cada óbito, analisar o comportamento dessa pessoa, se ele usou algum tipo de medicamento previamente, se ele usava máscara, se ele se protegia. Isso leva um tempo para ser estudado. Mas é senso comum de que essas informações não verdadeiras interferiram, sim, no tratamento dessas pessoas que adoeceram e infelizmente foram a óbito”, reflete o subsecretário Reblin.