Por Gabriela Knoblauch, da Assessoria de Imprensa da Assembleia Legislativa do Espírito Santo
Sou filho da hanseníase. Neto, na verdade. Sou a terceira geração dentro da minha família. Minha avó foi interna da Colônia de Itanhenga. Minha mãe foi a primeira interna no preventório Alzira Bley, em 1937. Entrou com apenas 4 anos. Depois, contraiu a doença e passou a viver no leprosário. Lá, conheceu meu pai, que veio de um leprosário de Minas Gerais. Tiveram oito filhos. Todos levados para viver no preventório. Eu fiquei até os 2 anos no leprosário, no meio dos doentes. Não fui contaminado. Mas o normal era ser levado ao preventório logo após o nascimento. As mães mal tinham a oportunidade de olhar para os filhos.”
O relato é de Heraldo José Pereira. Um dos milhares de filhos e filhas de hansenianos separados dos pais ainda pequenos e levados ao Educandário Alzira Bley (EAB), o preventório, local para onde os filhos saudáveis de pessoas com hanseníase eram encaminhados sob a justificativa de evitar contágio pela doença que desde milhares de anos era chamada de “lepra”. A política de segregação de pessoas com hanseníase que, no Espírito Santo, vigorou de 1935 a 1972 deixou marcas até hoje difíceis de superar.
A hanseníase, antigamente conhecida como lepra, demandava isolamento compulsório em colônias. No Espírito Santo, pessoas acometidas eram isoladas no Hospital Pedro Fontes, em Cariacica.
Como forma de buscar reparo aos danos de diversas ordens vividos por quem passou boa parte da vida separado dos familiares e do restante da sociedade, a Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales) criou, no apagar das luzes de 2021, a Frente Parlamentar de Enfrentamento da Hanseníase (Ato 1.654/2021).
A iniciativa, de autoria do deputado estadual Hérculoes da Silveira, o Dr. Hércules (MDB), também busca a restauração do local. “Eu conheço bem o Hospital Pedro Fontes. Trabalhei lá por 10 anos e continuo indo, pelo menos, uma vez por mês. Estou vendo que o hospital precisa de atenção especial. Eu criei essa Frente para dar um suporte melhor, especialmente para os últimos pacientes que estão lá. São cerca de seis pessoas, somente. E para dar suporte para os filhos das hansenianas, que foram separados de suas mães no nascimento e levados ao preventório. As mães não podiam nem amamentar. É preciso fazer justiça para eles, para que recebam o que têm direito, ou seja, uma indenização em forma de dinheiro ou aposentadoria. Eles precisam de atenção e a Frente tem essa finalidade, além da restauração da capela dentro do cemitério do hospital”, explica o deputado.
Isolamento
A hansensíase era considerada até 1972 uma doença altamente contagiosa, sem tratamento e que demandava o isolamento do paciente gerando forte discriminação dos portadores. No Brasil o manejo da enfermidade seguia as diretrizes acordadas na I Conferência Internacional de Lepra (termo usado na época), que ocorreu em 1897, na Alemanha. Uma das determinações era de que as pessoas com a enfermidade fossem segregadas compulsoriamente.
No Espírito Santo, a internação obrigatória de pessoas com hanseníase foi iniciada em 1935 por meio do Decreto 7.117. Em conformidade com essa determinação, foi criada no estado, em 1937, a Colônia de Itanhenga, conhecida como leprosário, no município de Cariacica. Hoje o local é conhecido como Hospital Pedro Fontes. Já no Brasil, a internação compulsória de pessoas com a doença foi iniciada mais cedo, em 1924.
A medida representou uma espécie de morte social para muitos, além de um brusco afastamento do seio familiar, gerando uma série de sequelas emocionais naqueles que vivenciaram a situação. Existia no período a polícia sanitária que era encarregada de afastar os doentes do convívio social. As pessoas eram levadas à força se fosse necessário.
Preventório
Além dos locais de isolamento, também foram criados para o enfrentamento da doença os dispensários, onde eram realizados exames para confirmação ou descarte de novos casos, e os preventórios, que recebiam os filhos de pessoas com hanseníase afastados de seus pais desde o nascimento, o que impedia a criação de um vínculo afetivo entre filhos e pais.
Heraldo Pereira ainda lembra dos detalhes de sua infância e início da adolescência. O período vivido no preventório, o Educandário Alzira Bley, em Cariacica, foi marcado por boas lembranças de camaradagem com outros internos e seus sete irmãos biológicos, mas também por trabalho infantil compulsório, além de abusos físicos e psicológicos.
Heraldo conta que muitos ex-internos, dos quais é amigo até hoje, além dele próprio, sofreram com a dilaceração dos laços familiares resultado do isolamento. “Minha mãe não tem uma relação de amor comigo, mesmo hoje, com 81 anos, e eu com 50. Não foi possível criar. Eu não a culpo. Fui mandado para o preventório muito pequeno. Ela também tem os próprios traumas para administrar. Algumas mães até fugiam do leprosário pela mata para ver os filhos no preventório, ainda que longe. Mas nem todas tinham essa afeição.” Os hoje extintos leprosário e o preventório ficam no alto de um morro, a poucos quilômetros de distância. Na época, eram separados por uma mata.
Apesar da boa estrutura física do local, Heraldo conta que faltavam funcionários, roupas e até comida. “Fomos muito negligenciados pelo Estado. Nós trabalhávamos na carvoaria, na agricultura e no próprio preventório, cuidando dos internos mais novos. Eu fui responsável por um grupo de cerca de 20 garotos com apenas 13 anos. Era um trabalho escravo, sem qualquer remuneração”, conta o ex-interno.
A falta de pessoal e supervisão do Estado quanto ao que acontecia no local, agravada pelo modelo de educação na época, abriu espaço para que abusos fossem cometidos. “Lembro de apanhar tanto de alguns funcionários como de outros internos. Não havia para quem pedir socorro. Também éramos submetidos a muito constrangimento. Quem urinava na cama, por exemplo, tinha que ficar no pátio segurando o colchão molhado na frente de todos. Minha história é triste, mas não é das piores. Tem muita gente que sofreu mais do que eu.”
Outro problema vivido pelos que cresceram no preventório Alzira Bley foi administrar a vida após a saída do local. “Quando o rapaz completava 16 anos, era mandado embora do preventório. As moças, aos 20. Não importava se você tinha para onde ir, o que comer. Lembro de ser avisado de que iria embora e que me dariam algumas roupas na saída. Só isso. Eu lutei muito, tornei-me bancário e hoje sou o presidente do Educandário Alzira Bley. Mas o destino de muitos que saíram de lá foi triste por falta de estrutura educacional, financeira e familiar”.
Heraldo hoje sonha em oferecer cursos profissionalizantes no educandário para a comunidade de Nova Rosa da Penha, que fica no entorno. O local, que funcionava como creche e escola, teve suas atividades encerradas pelo Estado em dezembro de 2021.Clicando aqui é possível acessar o catálogo virtual com mais registros fotográficos da época do preventório.
Fim do isolamento
Em 1972 foi descoberto o tratamento para a hanseníase. Com isso, os hospitais-colônia foram banidos oficialmente em todo o Brasil.
Segundo dados da Secretaria de Saúde do Espírito Santo (Sesa), por volta da década de 1980, orientado pelo Ministério da Saúde, o Hospital Pedro Fontes foi reformulado e parou de internar pacientes compulsoriamente. Além disso, também inaugurou o tratamento ambulatorial, estimulou a manutenção da unidade familiar e a reintegração social do paciente.
No Brasil, com a finalidade de acabar com o estigma sobre as pessoas com a doença, a Lei Federal 9.010/95 vedou o uso do termo “lepra” e seus derivados na linguagem empregada nos documentos oficiais da Administração centralizada e descentralizada da União e dos Estados-membros. A enfermidade passou a ser chamada de hanseníase em homenagem ao médico norueguês Gerhard Armauer Hansen, que identificou, em 1873, o bacilo causador da doença.
Sintomas
A hanseníase é uma doença transmitida pelas vias respiratórias (tosse, espirro, fala e respiração). O diagnóstico é feito por avaliações dermatológicas e neurológicas realizadas em consultório médico. Quando necessário, são feitos exames laboratoriais.
Hanseníase em números
Segundo a Sesa, em 2019 foram notificados 508 casos de hanseníase, sendo que a faixa etária mais atingida foi a de pessoas acima de 15 anos, do sexo masculino.
Já nos anos de 2020 e 2021 esse número de casos novos sofreu uma redução em torno de 40%. A queda dos casos pode estar relacionada à baixa procura nas unidades de saúde por pessoas com suspeita da doença. Outro ponto sobre a baixa procura ocorreu em razão da pandemia da Covid-19. Os dados dos anos de 2020 e 2021 ainda não estão consolidados.
O Brasil é o segundo país do mundo com maior número de casos de hanseníase, ficando atrás apenas da Índia, de acordo com o Ministério da Saúde.
Onde buscar tratamento
A Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) orienta que quem tiver suspeita da doença deve comparecer às unidades de saúde da rede pública (SUS). O ambulatório de Dermatologia do Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam) e o ambulatório de Dermatologia da Santa Casa, ambos em Vitória, são referência no tratamento da doença no Espírito Santo.
O tratamento está disponível nos 78 municípios do estado. O paciente pega a medicação na unidade de saúde e toma em casa. Ainda no início do tratamento, a condição deixa de ser transmissível.
Conscientização
O último domingo do mês de janeiro é dedicado ao Dia Mundial da Luta Contra a Hanseníase. A campanha, conhecida como Janeiro Roxo, tem como objetivo conscientizar as pessoas sobre a doença e acabar com o preconceito que ainda hoje cerca os acometidos pela hanseníase.