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Governo do ES agora quer privatizar o serviço de esgoto e MPC-ES vê “fraude regulatória”


Ministério Público de Contas observou falhas graves na proposta de privatização, na modalidade concessão administrativa, do sistema de esgotamento sanitário de 43 municípios capixabas pelo Governo Renato Casagrande e questiona indícios de direcionamento de licitação para favorecer grupo econômico escolhido previamente


Governo do ES agora quer privatizar o serviço de esgoto e MPC-ES vê “fraude regulatória” | Foto: Divulgação/Cesan

Além do projeto de privatização das seis unidades de conservação, os parques públicos estaduais, o Governo Renato Casagrande já privatizou a empresa estadual de distribuição de gás, a gestão de hospitais estaduais e até do saneamento básico, que é de competência da Cesan. Acontece que esta última privatização, em andamento, está sendo acusada pelo Ministério Público de Contas do Espírito Santo (MPC-ES) de conter “irregularidades bilionárias.”

O MPC-ES emitiu parecer questionando a proposta de Parceria Público-Privada (PPP) apresentada pela Companhia Espírito-Santense de Saneamento (Cesan), que destina à gestão privada o sistema de esgotamento sanitário de 43 municípios do Espírito Santo, entre os quais Vitória, Viana, Guarapari e Aracruz, em um processo licitatório bilionário.

Fraude regulatória

O Ministério Público de Contas avalia que a conduta institucional da Cesan representa violação às normas aplicáveis às concessões administrativas, constituindo tentativa de fraude regulatória e interpretação temerária dos institutos de direito administrativo, em benefício do interesse privado.

“Possibilidade de direcionamento”, alerta MPC-ES

A licitação encontra-se em fase interna, ainda não foi publicada, mas em análise prévia realizada pela equipe técnica do Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCE-ES) foram verificadas diversas irregularidades. As principais delas são: ausência de autuação e formalização de procedimento licitatório; possibilidade de direcionamento; limitações à competitividade; restrições à fiscalização; e cláusulas contratuais que privilegiam exclusivamente os interesses dos parceiros privados.

A proposta está avaliada em R$ 6,7 bilhões e se divide em dois lotes: Lote A, com prazo de concessão de 25 anos e 4 meses; e Lote B, com concessão por 23 anos e 7 meses. Ela prevê a transferência da gestão do esgotamento sanitário e serviços administrativos para a iniciativa privada, por meio de uma PPP na modalidade concessão administrativa, e não garante a universalização do saneamento básico.

Nessa modalidade de concessão administrativa, o serviço público é delegado a uma concessionária, a qual prestará os serviços em nome próprio, assumindo e respondendo diretamente pelos riscos do negócio.

Parecer aponta “falhas graves”

O parecer ministerial,apresentado no Processo 1143/2024, destacou que a proposta possui falhas graves, incluindo a ausência de um processo licitatório com regras claras e restrições que podem limitar o caráter competitivo do certame. Também ressaltou que o modelo jurídico proposto pela Cesan apresenta riscos significativos ao interesse público, principalmente pelo fato de restringir a fiscalização da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Espírito Santo (ARSP), uma vez que os parceiros privados que vencerem o certame não terão suas atuações submetidas ao crivo da entidade reguladora, o que pode criar um ambiente favorável à exploração irregular dos serviços.

A respeito do tema, o órgão ministerial pontuou que a pretensão da Cesan de restringir a atuação fiscalizatória da ARSP “representa flagrante violação aos princípios da regulação e da transparência administrativa”. Acrescentou que a alegação de que a ARSP atuará prioritariamente sobre a Cesan não encontra respaldo jurídico, pois decisões do próprio Tribunal de Contas confirmam “o entendimento de que a fiscalização deve recair diretamente sobre as concessionárias das PPPs, quanto ao objeto específico dessas parcerias”.

Além disso, o MPC-ES trouxe evidências das desvantagens do modelo proposto, que compromete a universalização do esgotamento sanitário e prejudica regiões menos favorecidas dos municípios.

Decisão do Governo exclui pedido de aprovação pelo Conselho do MRAE

Outro ponto destacado no parecer é a não submissão do projeto de PPP à apreciação e aprovação do Colegiado Regional da Microrregião de Águas e Esgoto do Espírito Santo (MRAE), etapa obrigatória para projetos com impacto regional. Essas omissões, na avaliação do órgão ministerial, comprometem a legalidade e a eficiência do processo licitatório, colocando em risco os objetivos de universalização e modicidade tarifária exigidas pela legislação de saneamento.

“Diversos dispositivos da Lei Complementar Estadual 968/2021 estabelecem, de forma inequívoca, a indelegável competência da MRAE para apreciação de projetos com impacto regional, por meio de seus múltiplos órgãos, configurando-se como mecanismo essencial de governança interfederativa, e não como mera formalidade burocrática.” (Trecho do Parecer do MPC-ES no Processo 1143/2024).

A manutenção de cláusula no edital que estabelece a necessidade de apresentação de atestado igual ou superior a 50% dos valores exigidos nos respectivos itens é alvo de críticas no parecer.

O MPC-ES entende que essa exigência, relacionada à qualificação técnico-operacional das licitantes, “consubstancia verdadeira restrição à competitividade do certame, configurando mecanismo velado de direcionamento que privilegia, de forma inequívoca, os conglomerados empresariais já consolidados no mercado nacional, a exemplos dos grupos econômicos que integram Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON Sindcon)”.

Interesse público x interesse privado

A área técnica do TCE-ES reconhece algumas falhas e propõe recomendações à Cesan, enquanto o MPC-ES defende medidas corretivas mais duras, com a expedição de determinações. Tendo em vista que os ajustes recomendados pela equipe técnica não têm cumprimento obrigatório, na prática eles podem funcionar como meros conselhos, que a Cesan fica livre para seguir ou não.

O órgão ministerial defende que as recomendações não seriam suficientes para corrigir a natureza estrutural dos problemas constatados, os quais, conforme o parecer, beneficiam exclusivamente interesses privados, enquanto os municípios e usuários podem sofrer prejuízos financeiros e na qualidade dos serviços.

“(…) praticamente todos os efeitos dos achados de auditoria encontrados no Projeto de Parceria Público-Privada apresentado pela CESAN são flagrantemente em benefício exclusivo da concessionária a ser contratada, nunca em favor da própria CESAN, redatora do Projeto. Mesmo nos casos de insegurança jurídica ou de controvérsias na licitação e na execução do contrato, os apontamentos realizados pelos auditores do TCE-ES demonstram favorecimento exclusivo à empresa privada que prestará os serviços: (…) Em outras palavras, os “erros” cometidos pela CESAN no presente caso foram todos em prejuízo do interesse público e da própria Companhia. A este propósito, como é possível que em 32 irregularidades, das quais 11 foram afastadas em sede análise conclusiva, o erro ocorra sempre para beneficiar o interesse privado? Por que em contratos dessa magnitude não se erra em favor do interesse público?” (Trecho de Parecer do MPC-ES no Processo 1143/2024).

“Inviável do ponto de vista técnico”, afirma o Ministério Público de Contas

Nos moldes atuais da proposta de PPP, o MPC-ES a considera “inviável do ponto de vista técnico”, afirma que ela desafia o bom senso e a probidade administrativa, além de representar desrespeito à população dos 43 municípios atendidos pela Cesan.

“A partir de sólidos argumentos apresentados pela área técnica do TCE-ES, mostra-se impossível, sob o ponto de vista técnico, prosseguir com a presente PPP nos moldes em que fora concebida, sob pena de se atuar com profundo desrespeito à população dos 43 municípios capixabas com os quais a CESAN mantém efêmeros Contratos de Programa, desafiando o bom-senso e a probidade administrativa, na medida em que a modelagem de negócio proposta se mostra flagrantemente orquestrada para beneficiar exclusivamente o ‘parceiro privado’ (…)”. (Trecho do Parecer do MPC-ES no Processo 1143/2024).

Governo do ES quer excluir municípios do processo decisório

A tentativa da Cesan de excluir os municípios do processo decisório que envolve a PPP é outro ponto abordado no parecer. O MPC-ES considera indispensável a participação efetiva dos municípios para garantir que essa parceria seja legal, transparente e eficiente, já que são os municípios os responsáveis por cuidar do saneamento básico em seus territórios.

A ausência de participação ativa dos municípios nesse processo pode levar a uma precarização dos serviços, especialmente em áreas mais vulneráveis, onde o retorno financeiro não é atrativo para investidores.

Tentativa de simulação

A PPP tem como objeto a prestação de serviços de saneamento básico (esgotamento sanitário) diretamente aos usuários. Sendo assim, quase todos os serviços serão prestados pela futura concessionária aos usuários, com sub-rogação dos direitos concedidos à Cesan.

Segundo o MPC-ES, a comprovação de que a concessionária será diretamente responsável por atender os moradores dos municípios envolvidos na PPP está em detalhes do edital, como a estruturação de áreas de atendimento ao público, manutenção de equipes de plantão e gestão das atividades comerciais e operacionais.

Conforme afirma a equipe técnica na Instrução Técnica Conclusiva 03543/2024-6, “as concessões administrativas (PPP) vieram para tornar possível a adoção do regime de concessões de serviços públicos aos serviços que já eram contratados através de contratações comuns. E, adotando o regime de concessão de serviços públicos, temos obrigatoriamente uma delegação da prestação do serviço (arts. 2º e 3º da Lei 8.987/95), no caso pela Cesan, detentora do direito de prestação do serviço (através de concessão imprópria/contrato de programa), que vai delegar parte desse serviço à(s) futura(s) concessionária(s), não tendo como fugir da delegação e da consequente sub-rogação de direitos à concessionária (…)”.

No entanto, a Cesan sustenta que o arranjo não configura subconcessão, conforme argumentos apresentados ao longo do processo que buscam descaracterizar a existência de relação direta do parceiro privado a ser contratado com os usuários da concessão (cidadãos capixabas). Tanto o MPC-ES como a equipe técnica do TCE-ES entendem que essa situação caracteriza simulação de negócio jurídico e, inclusive, pode levar à nulidade do contrato.

“A tentativa da CESAN de descaracterizar a existência de relação direta da concessionária com os usuários da concessão, reconhecida pela equipe de auditores do TCE-ES, mostra como o modelo de PPP em análise foi concebido para beneficiar o interesse privado em detrimento do interesse público, configurando tentativa de simulação de negócio jurídico, apta a ensejar sua nulidade.” (Trecho de Parecer do MPC-ES no Processo 1143/2024).

Análise prévia

O processo em análise trata de uma fiscalização da fase preparatória da PPP destinada à ampliação, manutenção e operação do sistema de esgotamento sanitário e à prestação de serviços de apoio à gestão comercial em 43 municípios capixabas. A análise ocorre de forma concomitante, ou seja, durante a fase interna da licitação, antes da divulgação pública do edital.

Esse tipo de acompanhamento ocorre durante a primeira etapa de um processo licitatório, é específico do controle concomitante do TCE-ES e tem como objetivo identificar, de maneira preventiva, atos que possam causar prejuízo aos cofres públicos, assim como irregularidades que podem ser corrigidas ​​e falhas nos procedimentos internos. Essa abordagem oferece aos gestores a oportunidade de concordar com os problemas de forma tempestiva, evitando prejuízos irreversíveis aos cofres públicos.

O MPC-ES ressalta que o acompanhamento sobre a fase interna da licitação não impede que irregularidades – inclusive as já apontadas pela área técnica – sejam tratadas em processos independentes, como denúncias ou representações.

No caso específico dessa PPP da Cesan, como os possíveis responsáveis pelos “achados” ​​não foram citados para responder pelas falhas no projeto de privatização, mas apenas notificados para prestar esclarecimentos, o órgão ministerial entende que a situação reforça a necessidade de aprimorar essa forma de fiscalização. O objetivo é evitar que o Tribunal de Contas seja usado como consultoria jurídica ou instrumento para legitimar práticas irregulares sem a devida análise.

Depois de passar pela análise da equipe técnica do TCE-ES, o processo de fiscalização na modalidade acompanhamento (Processo 1143/2024) chegou ao MPC-ES para manifestação. Após a emissão do parecer ministerial, ele foi encaminhado ao relator do caso, conselheiro Luiz Carlos Ciciliotti, e segue para análise do Plenário do TCE-ES, colegiado que deverá decidir sobre a manutenção ou não da PPP nos moldes propostos. O processo está previsto para ser apreciado na pauta da sessão virtual desta quinta-feira, 12 de dezembro.

Proposta de prejulgado

O parecer ministerial ainda traz um pedido de instauração de Incidente de Prejulgado no Tribunal de Contas para esclarecer a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) a empresas públicas e sociedades de economia mistas que recebem recursos do Tesouro para aumento de capital sem aumento da participação acionária.

Conforme previsto na LRF, seus dispositivos se aplicam somente às empresas estatais dependentes, definidas como empresas controladas que recebem do ente controlador recursos financeiros para pagamento de despesas com pessoal, de custeio em geral ou de capital, excluídos, neste último caso, aqueles provenientes de aumento de participação acionária.

A Cesan é uma sociedade de economia mista que se apresenta como empresa estatal não dependente, ou seja, capaz de se sustentar e expandir sua capacidade de atuação sem depender de aportes do ente controlador. Todavia, o MPC-ES ressalta que, na prática, aportes do governo do Estado estão sendo destinados à Cesan para cobrir despesas de capital sem o correspondente aumento da participação acionária, indicando que pode estar ocorrendo o que se denomina “dependência de fato”.

Assim, a análise pretendida no Incidente de Prejulgado tem como foco os recursos do Tesouro Estadual destinados à Cesan, os quais, embora direcionados a investimentos, não proporcionam aumento percentual na participação acionária do ente controlador, no caso, o governo do Estado do Espírito Santo.

“O Acórdão 937/2019 do TCU aborda a questão da sujeição das sociedades de economia mista à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), mesmo aquelas classificadas como “não dependentes”. A análise centra-se no conceito de dependência de fato, evidenciada pela utilização de recursos do Tesouro Nacional para cobrir despesas que não se destinem ao aumento da participação acionária, o que pode configurar uma situação de dependência mesmo na ausência de uma classificação formal como ‘dependente’.” (Trecho do Parecer do MPC-ES no Processo 1143/2024)

A definição de empresa estatal dependente, presente no art. 2º, inciso III, da LRF, exclui da sua submissão as empresas controladas que recebem recursos financeiros para aumento de participação acionária. A constatação da área técnica de que os recursos destinados à Cesan não se enquadram nessa exceção evidencia a necessidade de uma interpretação uniforme e vinculante sobre o tema.

O pedido do órgão ministerial, portanto, destaca a necessidade de uma decisão vinculante que defina os limites de aplicação do art. 2º, inciso III, da LRF, com o objetivo de garantir a responsabilidade fiscal no uso de recursos públicos.

“A problemática reside na classificação da CESAN como estatal não dependente, o que, segundo a Companhia, a eximiria das obrigações da LRF. No entanto, a área técnica desta Corte de Contas constatou que as despesas de capital da CESAN não se destinam ao aumento da participação acionária do Estado na empresa, o que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU), configura dependência de fato e a sujeita à LRF, conforme destacado no Acórdão 937/2019 do TCU.” (Trecho do Parecer do MPC-ES no Processo 1143/2024)

Conforme ressaltado no parecer, a submissão da Cesan à LRF não visa impedir sua autonomia administrativa, mas sim garantir a sustentabilidade financeira da companhia e proteger o erário de eventuais riscos. Afinal, a observância das normas de responsabilidade fiscal é fundamental para assegurar a boa gestão dos recursos públicos e a eficiência na prestação de serviços à população.

O Incidente de Prejulgado visa possibilitar a análise aprofundada da questão, com a participação de todos os interessados, culminando em decisão vinculante para casos análogos e uniformizando a interpretação jurídica sobre o tema.

O MPC-ES enfatiza que a decisão do TCE-ES será crucial para definir não apenas a situação da Cesan, mas também outros casos semelhantes envolvendo empresas públicas e sociedades de economia mista.

Dados imprecisos sobre esgotamento sanitário

Embora não detalhadas no parecer, o MPC-ES alerta sobre divergências significativas apontadas pelo Núcleo de Controle Externo Meio Ambiente Saneamento e Mobilidade Urbana (NASM), no Processo TC 5596/2023 (Auditoria de Conformidade), entre as informações declaradas por alguns municípios capixabas ao Sistema Nacional de Informações em Saneamento (SNIS ou SINISA, a partir de 2024) e os dados reais dos serviços de saneamento.

O SNIS é o maior e mais completo banco de dados sobre saneamento básico da América Latina, contendo informações de caráter operacional, institucional, administrativo, econômico-financeiro, contábil e gerencial sobre a prestação de serviços de água, esgoto, manejo de resíduos sólidos urbanos e drenagem de águas pluviais.

A alimentação do SNIS com informações incorretas ou inverídicas impacta negativamente a integridade do banco de dados, que é fundamental para o planejamento, o acompanhamento e a fiscalização da implementação de políticas públicas e projetos na área de saneamento básico em âmbito municipal, estadual e nacional, bem como para a fiscalização e o acompanhamento do desempenho dos prestadores e o controle social.

Portanto, a falta de confiabilidade nas informações do SNIS pode afetar a proposta de PPP apresentada pela Cesan, especialmente na definição de metas e indicadores de desempenho. A proposta tratada no Processo 1143/2024 utiliza informações do SNIS e a precisão desses dados é essencial não só para o sucesso da licitação, como também para a execução contratual.

Serviço:

1) Confira o Parecer do MPC-ES  no Processo 1143/2024

2) Confira a manifestação do MPC-ES no Processo 5596/2023

3) Acompanhe o andamento do Processo 1143/2024