Além de condenado a conceder indenização de R$ 20 mil por danos morais, o juiz mandou o Governo estadual pagar pensão vitalícia à ex-funcionária, por ter contraído doença grave
O juiz da Vara Cível e Comercial de Viana (ES), Rafael Calmon Rangel, condenou o Governo do Estado do Espírito Santo ao pagamento de pensão mensal de caráter vitalício em favor de uma auxiliar de cozinha, que trabalhava no Hospital Estadual Antônio Bezerra de Farias, em Vila Velha (ES). De acordo com o que consta no processo 0000864-64.2015.8.08.0050, a funcionária realizava tarefas que ultrapassavam as forças de um homem de porte médio, sendo a única responsável pela alimentação da zona pediátrica.
Ela era obrigada pelo Governo do Estado a fazer todo o serviço de alimentação do hospital sozinha, começando pelo preparo do café da manhã de todos os setores do hospital e pela limpeza completa da cozinha e do refeitório. Além disso, a mulher revelou que cumpria horas além da sua jornada de trabalho por ter que auxiliar no almoço. Diante desse trabalho imposto pelo Governo estadual, ela comprovou que foi diagnosticada com espondilodiscoartrose cervical e tendinopatia do supraespinhoso – conhecidas como artrose da coluna vertebral e tendinite supraespinhal, respectivamente.
Conforme os autos, a requerente teve redução da capacidade laboral, parcial e definitiva, comprovadas pelo laudo pericial realizado no processo de aposentadoria, fazendo com que a trabalhadora se aposentasse por invalidez. O Juiz da Vara Cível e Comercial de Viana analisou o caso e atribuiu ao Estado a responsabilidade pelos danos sofridos pela parte requerente, condenando o réu a indenizar a trabalhadora em R$ 20 mil por danos morais. Além disso, o magistrado determinou que o requerido pague pensão mensal vitalícia, a título de danos materiais.
Íntegra da sentença
SENTENÇA
Visto em inspeção.
M.C.F. ajuizou Ação Indenizatória em face do ESTADO DO ESPÍRITO SANTOS (deve a Secretaria promover a atualização do polo passivo conforme a petição de fl. 156) alegando, com base nos documentos de fls. 12/152, basicamente, que, entre os anos de 1995 e 2013, exerceu o cargo de auxiliar de cozinha/serviços gerais no Hospital Estadual Antônio Bezerra de Farias, tendo trabalhado na cozinha do referido hospital até o ano 2000. Alega ainda que, no período em que exerceu suas atividades laborativas como auxiliar de cozinha, essa realizava tarefas que ultrapassavam as forças do homem médio, já que era responsável, sozinha, pela alimentação do setor Pediátrico, pela preparação do café da manha de todos os setores do hospital, pela higienização completa da cozinha e refeitório, e que em alguns dias ainda ficava além de sua jornada de trabalho por ter que auxiliar na preparação do almoço. Continua a autora, que por realizar todo esse trabalho sozinha, passou a sentir fortes dores no braço, o que teria levado a autora a realizar diversas consultas e exames a fim de encontrar o que estaria ocasionando as referidas dores.
Realizados os exames, ficou constatado que a autora seria portadora de espondilodiscoartrose cervical e tendinopatia do supraespinhoso, o que, conforme perícia realizada nos autos do processo de aposentadoria da parte, desencadeou a redução da capacidade laboral parcial e definitiva, e consequentemente a autora fora aposentada por invalidez com proventos integrais.
Em razão da suposta conexão entre o trabalho que a autora exercia como auxiliar de cozinha e a doença adquirida, pede a autora que seja o requerido condenado ao pagamento de pensão durante enquanto estiver viva, a título de danos materiais, bem como a condenação ao pagamento de indenização, a título de danos morais.
Citado, o requerido apresentou Contestação às fls. 163/173, arguindo, preliminarmente, a prescrição da pretensão autoral.
Réplica às fls. 234/340, rebatendo as alegações do estado réu e requerendo o aproveitamento do laudo médico da perícia realizada nos autos da ação previdenciária.
Cuida-se, pois, de demanda indenizatória em que litigam ex servidor público e o Estado acerca de suposta responsabilidade objetiva do réu pela doença adquirida pela autora no decorrer de seu exercício laborativo.
Identificado o caso, passo a decidir.
Como relatado acima, observa-se que a parte requerida arguiu preliminarmente a prescrição da pretensão autoral, considerando-se que a parte autora exerceu os serviços como auxiliar de cozinha, que são considerados por ela os causadores da doença adquirida, apenas até o ano de 2002, e considerando-se que a parte ajuizou a demanda nos idos de 2015, o prazo quinquenal já teria sido ultrapassado. Ocorre que, como explicado na Decisão saneadora proferida, que já rejeitou a preliminar arguida, o início do prazo prescricional no caso em comento se dá a partir da ciência inequívoca da incapacidade laboral, não importando a data do fato.
DO MÉRITO
Entende-se que o dever de indenizar surge quando comprovada a responsabilidade do suposto causador do dano, sendo essa responsabilidade objetiva ou subjetiva, e se o dano de fato ocorreu. No caso em comento, a fim de dirimir quaisquer dúvidas existentes quanto a responsabilidade do requerido quanto à doença adquirida pela autora, este Juízo admitiu à título de prova emprestada, que seja analisado o laudo pericial confeccionado nos autos de nº 0001873-57.2006.8.08.0024.
Em analise ao referido laudo, que consta nas fls. 119/122, é possível observar que o médico que examinou a requerente concluiu que de fato, apesar de a doença possuir origem endodegenerativa, foram os movimentos repetitivos que essa exercia nas atividades laborais como auxiliar de cozinha, que contribuíram para a precipitação dos sintomas da doença, resultando na incapacidade laboral parcial e definitiva da autora. Assim, consequentemente, a autora fora aposentada por invalidez com proventos integrais.
Constatado que de fato o exercício laboral praticado pela autora contribuiu para a incapacidade laboral desta, não me restam dúvidas quanto ao dever de indenizar, que deve ser atribuído ao requerido.
DA INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL
Como já identificado, no presente caso existem requisitos capazes de atribuir ao Estado requerido o dever de indenizar a parte autora. Em contrapartida, alega o requerido que a condenação ao pagamento de danos materiais em forma de pensionamento, como pedido pela autora, incorreria em bis in idem já que a parte está recebendo aposentadoria integral por conta da invalidez permanente.
Bis in idem é um termo em latim utilizado pelo ordenamento jurídico quando é identificado uma duplicidade de sanção sobre o mesmo fato. Diante disso, fundamenta o requerido que a condenação em danos materiais, cumulado com o recebimento da aposentadoria por invalidez seria um caso de duplicidade de ressarcimento pelo Erário.
Pois bem. Entendo que a alegação do requerido não merece prosperar uma vez que não seria o caso de duplicidade de ressarcimento, já que os pagamentos possuem fatos geradores e fundamentos jurídicos diversos. Explico.
A aposentadoria por invalidez recebida pela autora é verba de origem previdenciária, e sua aplicação é regulamentada pela Lei nº 8.213/91 e em que a União visa assegurar meios de manutenção da vida de seus beneficiários, por conta das consequências advindas pelos danos sofridos. Em contrapartida, a indenização em forma de pensionamento à título de reparação pelos danos materiais sofridos em nada se confunde com a verba de de origem previdenciária, já que está relacionada à responsabilidade objetiva do Estado, na qualidade de causador do dano, em reparar os danos sofridos pela autora, que a levaram à incapacidade laborativa, como previsto no Código Civil Brasileiro em seu artigo 950.
Ainda reforçando o entendimento de não configuração do instituto bis in idem, observa-se o Julgado a seguir:
AGRAVO INTERNO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. DOENÇA OCUPACIONAL. INDENIZAÇÃO POR DANOSMATERIAIS. DEFERIMENTO DA REINTEGRAÇÃO E BENEFÍCIOPREVIDENCIÁRIO. CONSTATAÇÃO DE QUE A INCAPACIDADE É TEMPORÁRIA. INEXISTÊNCIA DE ÓBICE AO DIREITO VINDICADO. Constatada a viabilidade de trânsito do recurso trancado por meio de decisão monocrática, o Agravo Interno deve ser acolhido. Agravo conhecido e provido. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. DOENÇA OCUPACIONAL. INDENIZAÇÃO POR DANOSMATERIAIS. CONSTATAÇÃO DE QUE A INCAPACIDADE É TEMPORÁRIA. DEFERIMENTO DA REINTEGRAÇÃO E BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. INEXISTÊNCIA DE ÓBICE AO DIREITO VINDICADO. Visando prevenir possível afronta a preceito de lei, dá-se provimento ao Agravo de Instrumento para se determinar o regular trânsito do Recurso de Revista. Agravo de Instrumento conhecido e provido. RECURSO DE REVISTA.DOENÇA OCUPACIONAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. CONSTATAÇÃO DE QUE A INCAPACIDADE É TEMPORÁRIA. DEFERIMENTO DA REINTEGRAÇÃO E BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. INEXISTÊNCIA DE ÓBICE AO DIREITO VINDICADO. Nos termos do art. 950 do CCB/2002, “se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu”. Como se vê, a pensão mensal, em caso de perda ou redução da capacidade laborativa – seja temporária ou permanente -, deve corresponder à importância do trabalho para o qual o empregado se inabilitou. É dizer, para fim de fixação da indenização por danos materiais a cargo do empregador, a investigação da incapacidade laboral deve partir do exame da atividade desempenhada pelo obreiro no momento do surgimento da doença, pouco importando se há a possibilidade de adaptação a outra atividade no mercado de trabalho. Ademais, é entendimento há muito pacificado no âmbito desta Corte Superior o de que o recebimento de benefício previdenciário, ou, ainda, a determinação de reintegração ao emprego para o exercício de atividade que se adéque à limitação sofrida pelo empregado não são obstativos do direito vindicado, na medida em que possuem fatos geradores distintos. Precedentes. Nesta senda, estando a decisão regional em desarmonia com a legislação de regência, e, por conseguinte, com o entendimento sedimentado no TST, o deferimento da indenização por danos materiais é medida que se impõe. Recurso de Revista conhecido e provido. RR – 1631-30.2010.5.02.0201
Assim, conclui-se que o recebimento dos proventos previdenciários em nada impede o deferimento do pedido de condenação do requerido em danos materiais, seja em forma de pensionamento, seja a condenação ao pagamento de uma só vez.
DA INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS
Declarada a responsabilidade objetiva do Estado em reparar a parte autora pelos danos materiais, consequentemente, tendo a parte sofrido danos morais, cabe, da mesma maneira, a reparação dos danos. O referido tipo de dano caracteriza-se pela ofensa aos bens de ordem moral de um indivíduo, como liberdade, honra, saúde e imagem. Neste diapasão, no caso concreto é possível observar que a parte autora sofreu danos de ordem moral quando a mesma, em decorrência do trabalho que exercia, e da negligência do Estado em permitir que ela realizasse todo o trabalho sozinha, encontrou-se com diversas limitações que não interferiram somente em suas atividades laborais, mas também nas atividades cotidianas e de sua intimidade, não restando assim dúvidas sobre o dever do Estado em repará-la pelos danos morais por ela sofridos.
PELO EXPOSTO, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO AUTORAL PARA:
A) CONDENAR O ESTADO DO ESPÍRITO SANTO ao pagamento de pensão mensal de caráter vitalício em favor da autora, a título de indenização por danos materiais, sendo que o valor mensal será o valor do último salário registrado e recebido pela autora, devendo os juros incidirem a partir do evento danoso, ou seja, a partir da constatação da incapacidade laborativa da autora por meio da Sentença proferida nos autos de nº 0001873-57.2006.8.08.0024, com fulcro no art. 398 do CC e Súmula 54 do STJ, e correção monetária também a partir da data do efetivo prejuízo, de acordo com a Súmula 43 do STJ;
B) CONDENAR O ESTADO DO ESPÍRITO SANTO ao pagamento de indenização, que fixo no valor de R$20.000,00 (vinte mil reais), à título de reparação pelos danos morais sofridos pela parte autora, com correção monetária a partir do arbitramento (Súmula nº 362 do STJ) e juros moratórios a partir do evento danoso (art. 398 do CC c/c Súmula nº 54 do STJ).
Considerando-se que a condenação é em face a Fazenda Pública, devem ser observados os critérios fixados pelos temas 810/STJ e 905/STJ para os respectivos cálculos de juros e correção monetária.
Assim, RESOLVO o mérito na forma do inc. I do art. 487 do CPC/15.
Condeno, pois, o requerido ao pagamento das despesas processuais e dos honorários advocatícios, os quais, após fixo em 8% (oito por cento) sob o valor da condenação, na forma do inciso II, § 3º do art. 85 do CPC/2015.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Com fulcro no que prescreve o inc. I do art. 496 do CPC (duplo grau de jurisdição obrigatório), remetam-se os autos ao Egrégio Tribunal de Justiça do Espírito Santo, com as nossas homenagens.
Diligencie-se.
RAFAEL CALMON RANGEL
Juiz(a) de Direitol