O jornal francês Le Monde, na sua edição deste último sábado (10) trouxe uma ampla matéria jornalística sobre os bastidores da lava-jato, garantindo que a operação foi criada param atender seus interesses próprios. Segundo a reportagem feita pelos jornalistas Nicolas Bourcier e Gaspard Estrada, este último diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e do Caribe (Opalc) da universidade Sciences Po de Paris, a decisão de interferir política e economicamente no Brasil foi tomada pelo governo americano em 2007, na gestão do ex-presidente, com o que entendiam ser a falta de colaboração do Brasil no programa de combate ao terrorismo.
A partir daí os agentes americanos começaram agir de forma sorrateira para enganar o governo brasileiro, usando como artifício órgãos nacionais para o combate à corrupção e, em troca, com oferecimento de treinamento. Uma das peças-chave foi o ex-juiz e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro, que foi convidado em 2007 para participar de encontro com departamento de relações internacionais nos Estados Unidos.
Técnica de envolvimento social
Além de benefícios próprios aos integrantes da denominada operação lava-jato, foram adotadas táticas, como ensinar o uso de delações premiadas e o envolvimento social na causa. “Para que o Judiciário possa condenar alguém por corrupção, é preciso que o povo odeie essa pessoa“, indicava a cartilha de orientação dos repassada pela funcionária da Embaixada americana tem Brasília, Karine Moreno-Taxman, durante conferência a agentes da Polícia Federal brasileira em 2009. “A sociedade deve sentir que ele realmente abusou de seu cargo e exigir sua condenação”, disse a americana.
Segundo os jornalistas do Le Monde a partir daí foram necessárias muitas entrevistas e pesquisas para chegar aos bastidores no que eles denominaram de que “há algo podre no reino do Brasil”. Eles lembram no texto que o país inteiro está sendo atingido por uma série de crises simultâneas, uma espécie de tempestade perfeita – recessão econômica, desastres ambientais, polarização extrema da vida política, Covid-19… A isto se somam os destroços do sistema judicial.
A reportagem conta que foi no dia 17 de março de 2014 que um jovem magistrado de nome Sergio Moro lançou uma vasta operação anticorrupção chamada “Lava Jato” (“Lavagem Expressa”), envolvendo a gigante petrolífera Petrobras, empresas construtoras e um número impressionante de líderes políticos. De uma só vez, foi dito, o homem impetuoso e sua equipe de investigadores, apoiados pelo poder judiciário e pela mídia, iriam limpar e salvar o Brasil.
Foram emitidos 1.450 mandados de prisão, 533 acusações apresentadas e 174 pessoas condenadas. Nada menos que 12 chefes de Estado brasileiros, peruanos, salvadorenhos e panamenhos foram indiciados. Uma soma colossal de 4,3 bilhões de reais (610 milhões de euros) foi recuperada dos cofres públicos em Brasília. Mesmo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, adorado pela maioria do público, não conseguiu resistir à onda, até que se viu atrás das grades.
“Conselheiro jurídico”
Para aproveitar a dianteira obtida, os EUA foram além e criaram um posto de “conselheiro jurídico” na embaixada brasileira, que ficou a cargo de Karine Moreno-Taxman, especialista em combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo.
Através do “projeto Pontes”, os Estados Unidos garantiram a disseminação de seus métodos, que consistem na criação de grupos de trabalho anticorrupção, aplicação de sua doutrina jurídica (principalmente o sistema de recompensa para as delações), e o compartilhamento “informal” de informações sobre os processos, ou seja, fora dos canais oficiais. Qualquer semelhança com a “lava jato” não é mera coincidência.
No ano de 2009, dois anos depois, Moreno-Taxman foi convidada a falar na conferência anual dos agentes da Polícia Federal brasileira, em Fortaleza. Diante de mais de 500 profissionais, a norte-americana ensinou os brasileiros a fazer o que os EUA queriam: “Em casos de corrupção, é preciso ir atrás do ‘rei’ de maneira sistemática e constante, para derrubá-lo.”
Lei americana no Brasil
Em 2013, a pressão internacional fez efeito, e o Congresso brasileiro começou a votar a lei anticorrupção. Para não fazer feio diante da comunidade internacional, os parlamentares acabaram incorporando mecanismos previstos no Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), uma lei que permite que os EUA investiguem e punam fatos ocorridos em outros países. Para especialistas, ela é instrumento de exercício de poder econômico e político dos norte-americanos no mundo.
Em novembro daquele mesmo ano, o procurador geral adjunto do DOJ norte-americano, James Cole, anunciou que o chefe da unidade do FCPA viria imediatamente para o Brasil, com o intuito de “instruir procuradores brasileiros” sobre as aplicações do FCPA.
Sem controle
A nova norma preocupou juristas já na época. O Le Monde cita uma nota de Jones Day prevendo que a lei anticorrupção traria efeitos deletérios para a Justiça brasileira. Ele destacou o caráter “imprevisível e contraditório” da lei e a ausência de procedimentos de controle. Segundo o documento, “qualquer membro do Ministério Público pode abrir uma investigação em função de suas próprias convicções, com reduzidas possibilidades de ser impedido por uma autoridade superior”.
A então presidente Dilma Rousseff optou por não dar razões para mais críticas ao seu governo, que só aumentavam, e sancionou a lei, apesar dos alertas. Em 29 de janeiro de 2014, a lei entrou em vigor. Em 17 de março, o procurador-geral da República da época, Rodrigo Janot, chancelou a criação da “força-tarefa” da “lava jato”. Desde seu surgimento, o grupo atraiu a atenção da imprensa, narra o jornal. “A orquestração das prisões e o ritmo da atuação do Ministério Público e de Moro transformaram a operação em uma verdadeira novela político-judicial sem precedentes”, afirmam Bourcier e Estrada.
O presidente democrata Barack Obama dava mostras de seu trabalho para ampliar a aplicação do FCPA e aumentar a jurisdição dos EUA no mundo. Leslie Caldwell, procuradora-adjunta do DOJ, afirmou em uma palestra em novembro de 2014: “A luta contra a corrupção estrangeira não é um serviço que nós prestamos à comunidade internacional, mas sim uma medida de fiscalização necessária para proteger nossos próprios interesses em questões de segurança nacional e o das nossas empresas, para que sejam competitivas globalmente.”
Ascensão brasileira
O que mais preocupava os americanos era a autonomia da política externa brasileira e a ascensão do país como uma potência econômica e geopolítica regional na América do Sul e na África, para onde as empreiteiras brasileiras Odebrecht, Camargo Corrêa e OAS começavam a expandir seus negócios (impulsionadas pelo plano de criação dos “campeões nacionais” patrocinado pelo BNDES, banco estatal de fomento empresarial).
“Se acrescentarmos a isso as relações entre Obama e Lula, que se deterioravam, e um aparelho do PT que desconfiava do vizinho norte-americano, podemos dizer que tivemos muito trabalho para endireitar os rumos”, afirmou ao Le Monde um ex-membro do DOJ encarregado da relação com os latino-americanos.
A tarefa ficou ainda mais difícil depois que Edward Snowden mostrou que a NSA (agência de segurança dos EUA) espionava a presidente Dilma Rousseff e a Petrobras, o que esfriou ainda mais a relação entre Brasília e Washington.
Submissão
Vários dispositivos de influência foram então ativados. Em 2015, os procuradores brasileiros, de forma submissa e para dar mostras de boa vontade para com os norte-americanos, organizaram uma reunião secreta para colocá-los a par das investigações da “lava jato” no país.
Eles entregaram tudo o que os americanos precisavam para detonar os planos de autonomia geopolítica brasileiros, cobrando um preço vergonhoso: que parte do dinheiro recuperado pela aplicação do FCPA voltasse para o Brasil, especificamente para um fundo gerido pela própria “lava jato”. Os americanos, obviamente, aceitaram a proposta.
Ingenuidade
O PT foi ingênuo ao não ver que o monstro em criação, prosseguem os autores. As autoridades estrangeiras, com destaque para um grupo anticorrupção da OCDE, amplamente influenciado pelos EUA, começaram a pressionar o país por leis mais duras de combate à corrupção.
Nesse contexto, Moro foi nomeado, em 2012, para integrar o gabinete de Rosa Weber, recém indicada para o Supremo Tribunal Federal. Oriunda da Justiça do Trabalho, a ministra precisava de auxiliares com expertise criminal para auxiliá-la no julgamento. Moro, então, foi um dos responsáveis pelo polêmico voto defendendo “flexibilizar” a necessidade de provas em casos de corrupção.
“Nos delitos de poder, quanto maior o poder ostentado pelo criminoso, maior a facilidade de esconder o ilícito. Esquemas velados, distribuição de documentos, aliciamento de testemunhas. Disso decorre a maior elasticidade na admissão da prova de acusação”, afirmou a ministra em seu voto.
O precedente foi levado ao pé da letra pelo juiz e pelos procuradores da “lava jato” anos depois, para acusar e condenar o ex-presidente Lula no caso do tríplex.
Interceptação ilegal
Vendo seu apoio parlamentar derreter, em 2015, Dilma decidiu chamar Lula para compor seu governo, uma manobra derradeira para tentar salvar sua coalizão de governo, conforme classificou o jornal. Foi quando o escândalo explodiu: Moro autorizou a divulgação ilegal da interceptação ilegal de um telefonema entre Lula e Dilma, informando a Globo, no que veio a cimentar o clima político para a posterior deposição da presidente em um processo de impeachment. Moro, depois, pediu escusas pela série de ilegalidades, e o caso ficou por isso mesmo.
Os Estados Unidos estavam de olho nas turbulências. Leslie Backshies, chefe da unidade internacional do FBI e encarregada, a partir de 2014, de ajudar a “lava jato” no país, afirmou que “os agentes devem estar cientes de todas as ramificações políticas potenciais desses casos, de como casos de corrupção internacional podem ter efeitos importantes e influenciar as eleições e cenário econômico”. “Além de conversas regulares de negócios, os supervisores do FBI se reúnem trimestralmente com os advogados do DoJ para revisar possíveis processos judiciais e as possíveis consequências.”
Assim, foi com conhecimento de causa que as autoridades norte-americanas celebraram acordo de “colaboração” com a Odebrecht, em 2016. O documento previa o reconhecimento de atos de corrupção não apenas no Brasil, mas em outros países nos quais a empresa tivesse negócios. Caso recusasse, a Odebrecht teria suas contas sequestradas, situação que excluiria o conglomerado do sistema financeiro internacional e poderia levar à falência. A Odebrecht aceitou a “colaboração”.
“Fatos indeterminados”
A “lava jato” estava confiante de sua vantagem, apesar de ter ascendido sem a menor consideração pelas normas do Direito. “Quando Lula foi condenado por ‘corrupção passiva e lavagem de dinheiro’, em 12 de julho de 2017, poucos relatos jornalísticos explicaram que a condenação teve base em ‘fatos indeterminados'”, destacou o jornal francês.
Após a condenação de Lula e assim tirá-lo de jogo nas eleições de 2018, Sergio Moro colheu os louros de seu trabalho ao aceitar ser ministro da Justiça do novo presidente Jair Bolsonaro. Enquanto isso, os norte-americanos puderam se gabar de pôr fim aos esquemas de corrupção da Petrobras e da Odebrecht, junto com a capacidade de influência e projeção político-econômica brasileiras na América Latina e na África. Os procuradores da “lava jato” ficaram com o prêmio de administrar parte da multa imposta pelos EUA à Petrobras e à Odebrecht, na forma de fundações de Direito privado dirigida por eles próprios em parceria com a Transparência Internacional.
Escalada
Após a eleição de Bolsonaro, e com moro agraciado com o cargo de ministro da Justiça (primeira escalada até chegar ao seu objetivo de ter um assento como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) veio à tona o escândalo da criação do fundo da Petrobras. O ministro Alexandre de Moraes frustrou os planos dos procuradores ao determinar a dissolução do fundo e direcionar o dinheiro para outras finalidades.
Em maio de 2019, o The Intercept Brasil começou a divulgar conversas de Telegram entre procuradores e Moro, hackeadas por Walter Delgatti e apreendidas pela Polícia Federal sob o comando do próprio Moro, enquanto ministro da Justiça. Elas mostram, entre outros escândalos, como Moro orientou os procuradores, e como estes últimos informaram os EUA e a Suíça sobre as investigações e combinaram a divisão do dinheiro.
Depois de pedir demissão do Ministério, Moro seguiu o mesmo caminho lucrativo de outros ex-agentes do DOJ e passou a trabalhar para o setor privado, valendo-se de seu conhecimento privilegiado sobre o sistema judiciário brasileiro em casos célebres para emitir consultorias, um posto normalmente bastante lucrativo. A Alvarez e Marsal, que o contratou, é administradora da recuperação judicial da Odebrecht.