Nas comemorações da chegada dos colonizadores portugueses, em Vila Velha (ES), o Governo do Estado declarou ponto facultativo nas repartições públicas nesta quinta-feira. Em Vila Velha a data é comemorada com feriado. Nas festas, os indígenas, que eram os verdadeiros donos das terras apropriadas pelos portugueses, não são lembrados
Nesta quinta-feira, dia 23 de maio, Vila Velha (ES) mantém a visão eurocentrista da chegada dos portugueses em terras habitadas pela população indígena, ao comemorar e festejar os 489 anos da chegada dos colonizadores portugueses nas terras dos indígenas que habitavam os Espírito Santo. Vila Velha estabeleceu que nessa data deve festejar e comemorar o “aniversário da cidade.” Para isso há vários pontos de interdição do trânsito.
A abordagem eurocentrista é a visão da História observada pelo olhar europeu e não de quem habitava o Brasil e o Espírito Santo, quando em 23 de maio de 1535 os portugueses sob o comando do donatário Vasco Fernandes Coutinho, a bordo da caravela Glória, desembarcaram na Prainha, em Vila Velha, com a missão de se apossar das terras indígenas e colonizar a então Capitania do Espírito Santo.
No Estado há legislação que garante os festejos dessa chegada dos europeus, declarando a data como sendo o dia da “Colonização do Solo Espírito-Santense” Historiadores que não utilizam a visão eurocentrista, mas a do lado oposto, dos índios que tiveram suas terras invadidas pelos europeus, alegam que o uso desse ponto de vista desconsidera totalmente todas as civilizações existentes fora do Velho Mundo.
No Novo Mundo (América), por exemplo, importantes civilizações como os Incas, Maias e Astecas não são levadas em conta. Na visão dos europeus não existe história antes de sua chegada. O próprio Governo do Espírito Santo em seu portal oficial louva a chegada dos colonizadores, enaltecendo a “luta contra os índios” e que pode ser conferido ao clicar neste link.
“As lutas contra os índios continuaram até que no dia 8 de setembro de 1551, os portugueses obtiveram uma grande vitória e, para marcar o fato, a localidade passou a se chamar Vila da Vitória e a data como a de fundação da cidade. Em seus 25 anos como donatário, Vasco Coutinho realizou obras importantes. Além da construção das duas vilas, também ergueu as duas primeiras igrejas locais: Igreja do Rosário, fundada em 1551 (ainda existente) e a Igreja de São João, ambas em Vila Velha”, diz o texto no portal oficial do Governo do Espírito Santo.
Cultura arqueológica e tradições cerâmicas
Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), no ano de 1968, o arqueólogo paranaense Celso Perota chegou ao Espírito Santo para desenvolver pesquisas em grande parte do Estado, no âmbito do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa). “Tal momento representou a construção de um primeiro modelo de ocupação pré-colonial no território capixaba, onde foram definidas algumas culturas arqueológicas e cronologias regionais para as tradições cerâmicas conhecidas em outras regiões do Brasil”, diz o Iphan.
Durante as décadas seguintes e até os dias atuais, Celso Perota continuou desenvolvendo pesquisas e passou a atuar na formação de outros profissionais, que atualmente seguem com investigações arqueológicas no âmbito acadêmico e no licenciamento ambiental. Devido ao acréscimo das pesquisas nos últimos anos, foram registrados mais de 340 sítios arqueológicos no Espírito Santo, a maioria deles situada na região costeira e norte do Estado.
De acordo com o Iphan, no Espírito Santo, há 550 sítios arqueológicos cadastrados, a maior parte situada na região costeira, sobretudo no norte do Estado, nos municípios de Linhares, São Mateus e Conceição da Barra. A região metropolitana de Vitória, principalmente Serra, Vitória, Vila Velha e Cariacica, também apresenta um grande potencial arqueológico, onde há mais de 80 sítios arqueológicos cadastrados.
“Os portugueses quase dizimaram os indígenas”
“A chegada da colonização é um marco, primeiro quase dizimaram os indígenas todos, depois os brancos com os brancos fizeram um tratado e fizeram um acordo. Parece que não entra em nenhum momento a opinião indígena nesse processo, será que algum indígena tinha conhecimento naquela época sobre a independência? Algum indígena foi consultado sobre sua terra?”.
“Acredito que não, pelo contrário, era como se todo o território não tivesse dono e os portugueses e espanhóis foram dividindo aquele tesouro que encontraram e passando por cima dos verdadeiros donos da terra. A independência pra mim foi coisa de político entre político. Pra gente, o maior marco realmente foi a chegada dos portugueses, onde nossos antepassados foram enganados e isso mudou para sempre a vida dos povos dessa terra.”.
As declarações acima são do Cacique Marcelo, da etnia Guarani, da comunidade Ka’agwy Porã e residente na Aldeia Nova Esperança, em entrevista para compor o dossiê “Povos indígenas no Espírito Santo: desafios da invisibilidade histórica e protagonismo político-social”, publicado na Revista do Arquivo Público do Espírito Santo (APEES”. O link para baixar esse documento, com 195 páginas, está no final desta matéria.
“Existe ainda um racismo muito forte, o preconceito contra os povos indígenas e a gente percebe que a gente não fica muito à vontade, na própria fala das pessoas quando falam do nosso modo de viver, eles não sabem, mas somos os verdadeiros nativos, pertencentes desse país, mas mesmo assim somos tratados como estrangeiros. Os não indígenas ao dar ouvido aos políticos que manipulam a população para pensar de forma negativa”, diz o cacique na publlicação.
“Os políticos manipulam, falam absurdos, por exemplo, o índio quer muita terra, o índio quer dinheiro, e por conta dessa falta de informação do povo eles acreditam e apoiam essa opinião e assim poucos conseguem entender a nossa verdadeira história e nosso pertencimento. Nós conhecemos nossa verdadeira história porque não perdemos nossa língua materna, então nossos bisavôs nos contaram de onde viemos, porque estamos aqui, como se chama nossa terra, nosso território, sabemos como devemos viver e onde deve estar nosso pensamento”, prossegue.
“Mas ainda para o não indígena ter conhecimento dessa nossa caminhada é muito difícil e acredito que é aos poucos, com nossos jovens podendo contar nossa história,que isso vai sendo mudado aos poucos. E claro, as escolas não ensinam nada sobre a nossa verdadeira história e sim sobre a história geral. Mesmo as escolas dentro da aldeia seguem o livro didático geral. Algumas pessoas escreveram sobre a história do Espirito Santo, mas nem todas as pessoas tem acesso a esse material. Então há um verdadeiro apagamento da nossa história. Alguma coisa que o não indígena escreve fica dentro das faculdades, é lido por poucos que se interessam”, continua.
“Nova forma de escrever a História”
“É importante criar novas formas de se escrever a história, hoje em dia já temos alguma autonomia com estudantes da própria aldeia. Aos poucos podemos nós mesmos escrever a nossa história e não depender apenas do mundo lá fora. Os indígenas estão aprendendo a dominar as ferramentas e com isso ele pode contar a história verdadeira, aquela que ele ouviu de seus avós. A tendência então é passar a informação de forma muito mais correta e assim vamos combatendo o preconceito”, assinala o cacique.
“De todas as formas foi impactado, os indígenas foram cada vez mais encolhidos, afastados do seu lugar natural, onde consideravam sagrados. Foram expulsando cada vez mais os indígenas do seu modo de vida, os indígenas foram massacrados, exterminados, mortos e a gente chega em tempos mais recentes, mas continua essa forma de dominação, queriam tirar os direitos indígenas, vistos como animais”, afirma.
“Os governos, por exemplo, fizeram de tudo para apagar os direitos, entraram com as leis de terras devolutas, onde o próprio governo dava esse caminho para as pessoas expulsarem de forma violenta os indígenas, depois abafavam isso, muitos indígenas morreram dentro das suas próprias terras. Limpavam a área para ocupar as terras indígenas”, continua..
“No Espírito Santo, por exemplo, davam terras indígenas, títulos que na verdade eram terras indígenas que iam para os italianos e com isso essas pessoas que receberam terras, criando novas formas, passando para empresas, que se instalaram em volta de todas as terras. Com o tempo, os indígenas conseguiram uma retomada de algum território pequeno, pelo menos para viver, mas onde estão as florestas, os animais, os rios com peixes”, conclui.
Genocídio indígena no Brasil, após a chegada dos portugueses
Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), a população indígena em 1500 era de aproximadamente 3 milhões de habitantes, sendo que aproximadamente 2 milhões estavam estabelecidos no litoral do país e 1 milhão no interior. A redução foi por assassinatos ou por doenças trazidas pelos europeus, que se apropriaram de suas terras.
Em 1650, esse número já havia caído para 700 mil indígenas e, em 1957, chegou a 70 mil, o número mais baixo registrado. De lá para cá, a população indígena começou a crescer. Em 2022, o número de indígenas residentes no Brasil, segundo o censo promovido pelo IBGE, era de 1.693.535 pessoas, o que representava 0,83% da população total do país. Em 2010, o IBGE contou 896.917 mil indígenas, ou 0,47% do total de residentes no território nacional.
Batalha do Cricaré, em São Mateus
Com o intuito de matar os índios que supostamente ameaçam o donatário português Vasco Fernandes Coutinho, na então Capitania do Espírito Santo, os ocupantes das terras indígenas planejaram dizimar os indígenas no atual município de São Mateus. Os portugueses, em 1557, enviaram Seis embarcações e aproximadamente duzentos homens, que saíram de Porto Seguro rumo ao Povoado do Cricaré.
Os índios estavam em três fortificações. Os invasores portugueses chegaram a destruir duas dessas fortificações, mas perderam forças e bateram em retirada. No entanto, dessa vez os indígenas saíram vitoriosos e conseguiram matar o comandante da Batalha do Cricaré, Fernão de Sá, que era filho do governador-geral do Brasil, Mem de Sá.
Serviço:
Leia ou faça o download (48 megabites) do dossiê “Povos indígenas no Espírito Santo – Desafios da invisibilidade histórica e protagonismo político-social”, que tem como editor-executivo Cilmar Cesconetto Franceschetto e publicado pelo Arquivo Público do Espírito Santo, clicando neste link.