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Marco temporal: STF ouve representantes das partes envolvidas e AGU

O julgamento prossegue nesta quinta-feira (2), com a continuação das manifestações das partes admitidas no processo e da PGR

O STF prossegue nesta quinta-feira com o julgamento do Marco Temporal, que objetiva “roubar” as terras indígenas | Foto: Divulgação

Com manifestações das partes e de terceiros interessados, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu prosseguimento, nesta quarta-feira (1), ao julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.031). A questão em discussão é a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena e desde quando essa ocupação deverá prevalecer, o chamado marco temporal. Na quinta-feira (2), o julgamento será retomado com as manifestações restantes e o voto do relator, ministro Edson Fachin.

O caso

A controvérsia em julgamento é o cabimento de uma reintegração de posse requerida pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma), atual Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), de área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), ocupada pela Comunidade Indígena Xokleng. A terra foi declarada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como sendo de tradicional ocupação indígena. No recurso ao STF, a Funai sustenta que o caso trata de direito imprescritível da comunidade indígena, cujas terras são inalienáveis e indisponíveis.

Analisando a questão, o Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4) entendeu não haver elementos demonstrando que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, como previsto na Constituição Federal (artigo 231), e confirmou a sentença que havia determinado a reintegração de posse ao órgão ambiental.

Demarcação não concluída

O representante do IMA, Alisson de Bom de Souza, sustentou que o processo de ampliação da Terra Indígena (TI) Ibirama-La Klanõ não foi concluído, pois o procedimento administrativo foi interrompido após a edição da portaria pela Funai, sem a homologação pelo presidente da República. Ele defendeu que só podem ser consideradas como terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas as que estavam ocupadas por eles em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

Disse, ainda, que esse marco temporal já foi admitido pelo STF no julgamento sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Em nome dos princípios da segurança jurídica, do direito à propriedade e do ato jurídico perfeito, Souza pediu o desprovimento do recurso. Em seu entendimento, a reforma da decisão do TRF-4 representaria considerar que o direito fundamental indígena é superior aos demais.

Direito à organização

Em nome da Comunidade Indígena Xokleng, que ocupa a TI Ibirama-La Klanõ, Rafael Modesto dos Santos afirmou que o marco temporal legalizaria os ilícitos ocorridos até o fim do regime tutelar indígena, que prevaleceu até a promulgação da Constituição de 1988. Na sua avaliação, se esse critério tivesse sido utilizado no caso Raposa Serra do Sol, a demarcação teria sido feita em ilhas, e não de forma contínua.

Segundo ele, as condicionantes estabelecidas naquele caso foram necessárias para dar operacionalidade à decisão do STF. Observou, ainda, que o marco temporal é uma forma de negacionismo, pois nega a ciência antropológica, única capaz de definir os limites de um direito territorial indígena, com base na Constituição.

Também em nome do povo Xokleng, o professor Carlos Marés lembrou que, após longo debate, prevaleceu na Assembleia Constituinte a tese de que os povos indígenas têm direito à sua própria organização, em detrimento do estímulo à assimilação, que prevalecia até então. Essa opção derruba a tese do marco temporal, pois adota o conceito de ocupação tradicional.

Para o professor, dentro desse conceito constitucional, as terras de ocupação tradicional são as habitadas, usadas para atividades produtivas e imprescindíveis para a manutenção das condições ambientais e a reprodução física e cultural das sociedades indígenas. Para Marés, negar o território é negar a organização social, e estabelecer um marco temporal equivale a dizer que os indígenas serão integrados e que suas sociedades deixarão de existir.

Segurança jurídica

Com fundamento no princípio da segurança jurídica, o advogado-geral da União, Bruno Bianco, pediu que o STF reafirme as condicionantes aplicadas na demarcação da TI Raposa Serra do Sol para que sejam reconhecidas, como terras indígenas, apenas as tradicionalmente ocupadas na data de promulgação da Constituição de 1988. Segundo ele, naquele julgamento, o Supremo fixou balizas e salvaguardas para a promoção dos direitos indígenas e a garantia da regularidade da demarcação de suas terras.

De acordo com Bianco, desde então, foram adotados, como regra geral, o marco temporal e o marco tradicional, exceto quando verificado o esbulho renitente por não indígenas. O advogado-geral defendeu a necessidade de preservação da segurança jurídica em razão da tramitação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei (PL) 490/2007, que trata do marco temporal.

Bianco pediu também a revogação da tutela provisória incidental que suspendeu o parecer 01/2017 da AGU, que, segundo ele, buscou uniformizar a interpretação a ser aplicada pela administração pública federal e garantir isonomia aos processos demarcatórios nos moldes do que foi decidido pelo STF no julgamento de Raposa Serra do Sol. A tutela incidental, deferida pelo ministro Fachin, suspendeu, também, a tramitação de todos os processos e recursos judiciais que tratem de demarcação de áreas indígenas até o final da pandemia da Covid-19 ou o julgamento final do RE 1017365.

Índios questionam tese do Marco Temporal

O ministro Edson Fachin, relator do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, que trata do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, admitiu no processo 35 entidades que, embora não diretamente envolvidas na causa, têm representatividade em relação ao tema e podem contribuir para o julgamento, com elementos e pontos de vista. São os chamados amici curiae (plural de amicus curiae, ou “amigos da corte”, em tradução literal). A admissão se dá por meio de requisição das entidades interessadas ao relator, que avalia o pedido e delibera a respeito.

Na sessão desta quarta-feira (1º) do Plenário do STF, foram ouvidos 18 dos 35 amici curiae, que refutaram a tese de que os indígenas só teriam direito às terras se estas estivessem sob sua posse na data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988). Confira, abaixo, um resumo das manifestações. A advogada indígena, Samara Carvalho Santos, mulher, nativa na etnia Pataxó, relembra que seu povo foi o primeiro a sofrer com a violência da invasão portuguesa e da violência que seus parentes sofreram no dia anterior em ação arbitrária e sem mandado da prefeitura de Porto Seguro (BA). Ela ressaltou que desde 1.500, o que invalida a tese de que apenas terras ocupadas após 1.988 deveriam ser demarcadas. Assista o depoimento da advogada indígena:

A advogada da etnia Pataxó, Samara Carvalho Santos, é uma das que falam em defesa dos índios | Vídeo: TV Justiça

Futuro em jogo

O representante da Articulação Dos Povos Indígenas Do Brasil (Apib), Luiz Henrique Eloy Amado, afirmou que a Constituição Federal foi categórica ao reconhecer o direito originário dos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas. No mesmo sentido, Samara Carvalho Santos, do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mipoiba), lembrou que o julgamento do recurso, além de definir uma tese que norteará as demarcações das terras indígenas, também decidirá o futuro das vidas desses povos. “Impor sobre nós o ônus de estarmos ocupando nossas terras em 5 de outubro de 1988 é desconsiderar um passado tão recente em que nem sequer tínhamos o direito de escolher nossos próprios destinos”, afirmou.

Diversidade étnica e cultural

O advogado Paulo Machado Guimarães, em nome da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), ressaltou que os direitos e as garantias constitucionais expressam o respeito à diversidade étnica e cultural.

Para o orador da Defensoria Pública da União (DPU), Bruno Arruda, a tese do marco temporal não é a melhor solução jurídica para o caso brasileiro, pois a relação entre o indígena e a terra não é individualista, e o direito originário sobre as terras é um direito comunitário. Ele também lembrou que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) considera a tese do marco temporal contrária às normas e aos padrões internacionais de direitos humanos.

Justiça social

Segundo Deborah Duprat, representante da Associação Juízes para a Democracia (AJD), a Constituição Federal de 1988 reconheceu aos indígenas direitos plenos, mas, para isso, eles precisam de seus territórios. A seu ver, a presença externa na área indígena deve ser excepcional, e o precedente do STF precisa ser superado, em nome da igualdade e da justiça social.

Pelo Instituto Socioambiental (ISA), Juliana de Paula Batista afirmou que as terras indígenas são fundamentais não apenas para os mais de 300 povos que nelas habitam, mas para toda a humanidade, pois são as áreas mais ambientalmente conservadas do país. “Cerca de 98% da área total das terras indígenas está preservada, e há cerca de 51 milhões de hectares de terras públicas sem destinação só na Amazônia Legal”, afirmou. Essa extensão, segundo ela, seria suficiente para resolver todo e qualquer impasse relativo à expansão do agronegócio e garantir segurança jurídica na realocação das pessoas que estão nas terras indígenas.

Ocupação ilegal X tradicional

Em nome da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Cezar Britto ressaltou a necessidade de se dar a interpretação originária ao artigo 231 da Constituição para impedir a ocupação ilegal de terras indígenas. Ele destacou que, ao resolver a questão de Raposa Serra do Sol, o Supremo afirmou que as terras que foram objeto de esbulho não estão sujeitas ao marco temporal.

Ivo Cípio Aureliano, representando o Conselho Indígena de Roraima, afirmou que a decisão sobre a TI Raposa Serra do Sol foi fundamental para todos os povos indígenas do país, mas os parâmetros fixados na ocasião dizem respeito apenas àquela situação, sem efeito vinculante sobre os demais processos demarcatórios.

Pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Cristiane Soares de Soares disse que a posse indígena de seus territórios tem natureza jurídica diversa da posse civil, pois decorre diretamente da Constituição Federal, que exige apenas a ocupação tradicional, ou seja, que esteja atrelada aos usos, costumes e práticas culturais de cada povo.

Genocídio

O representante da Fundação Luterana de Diaconia (FLD), Dailor Sartori Junior, mostrou preocupação com a possibilidade de que a concepção de limites temporais cartesianos aumente o risco de crimes de atrocidade. Ele lembrou que, para a caracterização do crime de genocídio, não é necessária a ocorrência de massacres, por se tratar de um processo de muitas etapas. Algumas delas, a seu ver, já ocorrem no Brasil, como discursos desumanizantes, omissões estatais sistemáticas e marco jurídico de proteção insuficiente.

Pela Conectas Direitos Humanos, Julia Mello Neiva observou que a comunidade internacional está atenta ao debate e alerta que a tese do marco temporal ignora o violento histórico de expulsão de povos de suas terras ancestrais. Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a aplicação de marcos temporais perpetua a violência crescente e a prática de atos racistas contra os indígenas.

Vínculo com a terra

Luisa Musatti Cytrynowicz, da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), ressaltou que o direito dos povos indígenas às suas terras é um direito fundamental, pois a existência desses povos depende do vínculo com suas terras. Com fundamento no princípio constitucional de não retrocesso social, ela defendeu que não se pode admitir alterações normativas que provoquem retroação dos processos de demarcação em curso.

Aluísio Ladeira Azanha defendeu o entendimento do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) de que a Constituição Federal adotou a ocupação tradicional como critério certo para o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas. Para ele, negar tais direitos é negar também a própria existência física e cultural dos povos indígenas, tendo em vista a absoluta interdependência que têm com seus territórios.

Conflitos territoriais

Em seguida, o procurador Daniel Pinheiro Viegas afirmou que o Estado do Amazonas é contrário à tese do marco temporal, com base no acompanhamento de processos empíricos e na pesquisa científica. Ele ressaltou que o estado, através do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, passou a compreender melhor as várias direções dos conflitos territoriais, muitos dos quais foram solucionados judicialmente graças à não aplicação da tese.

A representante do Indigenistas Associados (INA), entidade associativa dos servidores da Funai, Camila Gomes de Lima, afirmou que o processo de demarcação de terras envolve bases técnicas sólidas, levantamento de documentos e estudos abrangendo histórico de expulsões, massacres, confinamentos, remoções e outras modalidades de violência fundiária. Para a advogada, a tese do marco temporal pretende substituir os critérios técnicos e as investigações antropológicas por um critério arbitrário que não faz sentido na perspectiva dos povos indígenas.

Conservação da Biodiversidade

Em nome do Greenpeace Brasil, Alessandra Farias Pereira defendeu o papel das demarcações para a sobrevivência física e cultural dos povos nativos, para a contenção do desmatamento e para as estratégias de mitigação e adaptação das mudanças climáticas. Segundo Alessandra, a Convenção da Diversidade Biológica, do qual o Brasil é signatário, considera a criação de áreas protegidas uma das melhores ferramentas de conservação da biodiversidade e, no Brasil, essas áreas estão sob gestão especial, englobando as unidades de conservação, as terras indígenas e os territórios quilombolas.

Cláusula pétrea

Em nome do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Paloma Gomes considera que existe hoje uma tentativa de invalidar o que foi definido pelo legislador constituinte e pela sociedade brasileira em 1988. Segundo ela, a Constituição definiu que o direito à posse do território indígena originário, por ser anterior a qualquer outro, se sobrepõe a qualquer título de propriedade, e esses direitos são cláusulas pétreas, imprescritíveis, inalienáveis e imutáveis.

No mesmo sentido, Anderson de Souza Santos, que falou em nome do Conselho Aty Guasu Guarani Kaiowa, de Mato Grosso do Sul, defendeu que a tese do marco temporário seja declarada inconstitucional e que os artigos 231 e 232 da Constituição Federal sejam fixados como cláusulas pétreas. Ele afirmou que a falta de território faz aumentar a violência contra os povos indígenas.