Após a Academia Brasileira de Letras (ABL) incluir oficialmente as novas palavras “negacionismo” e “necropolítica” na relação de novas palavras e as colocaram aptas a ser utilizadas nos futuros dicionários, a Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales) trouxe o assunto para um debate. Convidou a psicóloga Luciana Souza Borges Herkenhoff a esclarecer por que muitos brasileiros negam a pandemia. Os termos são usados na imprensa nacional para se referir ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seus seguidores.
Oficialmente a ABL define o termo “negacionismo” como sendo: “Atitude tendenciosa que consiste na recusa a aceitar a existência, a validade ou a verdade de algo, como eventos históricos ou fatos científicos, apesar das evidências ou argumentos que o comprovam”.
Necropolítica
Já “necropolítica”, a ABL define assim: “Uso do poder político e social, especialmente por parte do Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões (gerando condições de risco para alguns grupos ou setores da sociedade, em contextos de desigualdade, em zonas de exclusão e violência, em condições de vida precárias, por exemplo), quem pode permanecer vivo ou deve morrer”.
A ABL optou em gravar um depoimento com o médio Dráuzio Varella para justificar a inclusão do termo “necropolítica” como uma nova palavra a ser incluída nos próximos dicionários. O médico Drauzio Varella, em depoimento gravado, afirmou que a Covid-19 no Brasil poderia ter sido ainda pior se não fosse o Sistema Único de Saúde (SUS).”‘Sem o SUS viveríamos uma barbárie. É o maior sistema de Saúde do mundo”, iniciou o médico.
“É o grande programa de distribuição de renda. É o que permite defender a vida dos brasileiros agora. O SUS não é perfeito, tem problemas de gestão, de financiamento, de troca de ministro de Saúde como se troca de camisa, mas o SUS melhorou desde o início da epidemia até agora. Que fique essa lição para quando a epidemia terminar. O SUS ainda é vilipendiado pelos brasileiros e é injusto”, disse Varella.
Também em depoimento gravado para a Academia Brasileira de Letras, a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal (MPF), Débora Duprat, trouxe à tona o conceito de “necropolítica”, referenciando o teórico político, filósofo, historiador camaronês, Achille Mbembe, que foi quem criou o termo em 2003 em ensaios literários e, posteriormente, em livro.
“Estão apostando numa política de eliminação de vidas, numa escala ascendente de pobreza e miséria extrema, voltando o país para o Mapa da Fome. A pandemia torna mais evidente essa política, num estado precarizado em investimento em Saúde’, criticou a procuradora Duprat.
Negacionismo
Na divulgação dos questionados feitos pelo legislativo estadual capixaba, a PhD em Psicologia do Desenvolvimento e professora da Universidade Vila Velha (UVV), Luciana Herkenhoff, explicou que o negacionismo é a negação das evidências. Sem citar o presidente Bolsonaro, a Assembleia divulgou uma entrevista de perguntas e respostas, conhecida no meio jornalístico como ping-pong.
Por que as pessoas negam fatos reais, que não podem ser contestados?
Do ponto de vista psicológico o “medo” é a principal palavra que resume o que faz uma pessoa negar a realidade. Uma forma de tentar superar o temor exagerado que é sentido diante de algum contexto.
Trata-se de uma disfunção cognitiva?
Realmente se trata de uma maneira disfuncional de aceitar o que é evidente, pois a pessoa sente um medo exagerado, não sabe o que fazer, e aí a reação automática é a negação, um jeito de se afastar de uma maneira ilusória daquilo que causa pavor.
O negacionismo traz em si multifatores?
Sim. Essa negação pode surgir diante de uma série de coisas, entre elas doenças, contexto no qual podemos entrar, por exemplo, mais especificamente na questão referente à pandemia da Covid-19 e suas variantes. E isso é muito preocupante, pois se trata de algo com repercussão global, e negar uma evidência com essa dimensão pode colocar em risco a vida de milhões de pessoas em todo o mundo.
O negacionismo faz parte da convicção própria de cada um ou pode ser “plantado” na cabeça das pessoas por influência de formadores de opinião?
Nesse caso podemos dizer que, por um lado, há o negacionismo por convicção própria, motivado pelo medo particular de determinado indivíduo devido a contextos próprios, vivências e experiências que acumulou durante a vida; mas por outro lado temos sim o negacionismo que se dissemina a partir da influência de pessoas que ocupam posição de poder seja no campo político, religioso, econômico, social, educacional ou moral.
Poderia explicar melhor isso?
O jeito de ser de cada um, suas influências religiosas e ideológicas; na verdade, nesse aspecto, alguns fatores podem levar parte da sociedade a aderir, por submissão discursiva, a movimentos negacionistas, sejam eles pandêmicos ou não.
E há ainda o negacionismo mais simplório, resultado de pura ignorância cultural e educacional assimilado por pessoas sem cognição suficiente para interpretar os fatos e entender a realidade.
O que a sra. tem a dizer sobre pessoas que não usam máscaras e se aglomeram em baladas sob o argumento de que a liberdade individual é mais importante que o direito da coletividade?
Esse tipo de negacionismo pode ser consciente ou inconsciente. Há pessoas que acreditam realmente que não vão se contaminar, que não há tanto perigo, enquanto outros têm noção do risco, mas arriscam a si próprios, colocando em risco também a vida dos familiares e das pessoas que tiverem contato com eles caso sejam vitimados pelo vírus.
Trata-se de um comportamento mais ligado aos jovens, que buscam o prazer acima de tudo, e por isso vão às baladas; mas há pessoas de meia-idade agindo de forma irresponsável também, e foi mostrado na mídia até idosos fazendo festas em plena pandemia.
Há também negacionistas que assim agem por não suportarem imposições?
Com certeza. Em meu consultório trato pacientes com esse tipo de resistência motivada pela mera questão de não aceitarem que algo seja imposto a eles pelo Estado, pela polícia, por qualquer autoridade. Eles têm essa natureza de se rebelar contra tudo o que simboliza autoridade. Relatam que sofrem muito com isso, que lhes causa muita revolta, chegam a falar que para eles isso representa uma angústia, a sensação de perda de controle sobre suas próprias decisões.
E o que fazer nesses casos?
Não tem como um psicólogo obrigar uma pessoa a fazer aquilo que ela não quer. Você tenta por meio do processo de escuta e de interação, usando os métodos próprios de cada linha de abordagem (psicológica), indicar o caminho mais sensato, mostrar que a pandemia em curso vai destruir ainda muitas vidas caso não haja respeito às normas sanitárias recomendadas pelas autoridades da área da saúde.
É possível fazer um negacionista deixar de sê-lo?
Quando se trata de questões relacionadas à psicologia acredito que nunca podemos trabalhar com o pensamento de que tudo está perdido, que não há como melhorar, ainda que um pouco, o desenvolvimento psíquico do ser humano.
Eu acho que a forma mais esperançosa de fazer um negacionista aceitar uma realidade é dar o exemplo. Quem não usa máscara, por exemplo, se começar a ver praticamente todo mundo usando, pode ser que ele caia na real e veja que ele está destoando, que se praticamente todos ao redor dele usam, algo pode estar errado na forma como ele está enfrentando determinada situação.