Uma pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Ufes propõe uma reflexão sobre os efeitos de sentido possíveis na leitura dos textos cotidianos. O estudo foi realizado pelo doutor em Linguística Anderson Ferreira, durante seu pós-doutorado na Ufes, e publicado no livro Ler Discursos, publicado pela Paco Editorial.
“O gesto de leitura é contínuo: todos os dias, a gente lê na rua ou na internet um conjunto de enunciados e textos, que são discursos. São textos incontornáveis, que não dependem de pegar um livro. Como dizia Paulo Freire, é uma leitura do mundo e da palavra, ou da palavramundo”, afirma Ferreira, lembrando que as leituras de cada pessoa contribuem para sua escrita e também para os seus valores.
No livro, o autor propõe refletir sobre as diferentes leituras possíveis para um mesmo texto e os elementos que o circundam – imagens, gestos, cores, etc. A proposta é considerar as várias perspectivas históricas, sociais e culturais. “Não se trata de uma leitura melhor, mas sim mais reflexiva.
Essa reflexão se aplica a uma publicidade no celular, aos textos sobre uma eleição ou mesmo a uma fake news que chega no seu celular. O discurso, ou conjunto de textos, pode gerar vários efeitos de sentido, que refletem disputas ideológicas e táticas, e essas leituras têm consequências também”, detalha.
As leituras cotidianas têm a característica de ocorrer em movimento – no ônibus, nas ruas – e não mais de forma concentrada, como antigamente. Para Ferreira, esse modo de ler é característico da contemporaneidade e do fluxo de informação. Assim, ele propõe que a leitura não busque identificar um sentido imediato que a encerre, mas sim que considere as diversas concepções de sentidos, melhorando a compreensão sobre o que foi lido e o diálogo em sociedade.
Análises e uso pedagógico
A publicação, que traz análises de discursos a partir de textos coletados no espaço digital durante o ano inicial da pandemia de covid-19, está organizada em três capítulos. No primeiro, propõe uma reflexão sobre o papel do tempo, do sujeito e do espaço na contemporaneidade e sobre as formas de olhar para eles. Essa discussão ocorre a partir da análise de notícias e de manchetes noticiosas.
O segundo capítulo analisa os efeitos de sentido de um vídeo do médico Dráuzio Varella de janeiro de 2020 (meses antes de ser decretada a pandemia, que recomendava que as pessoas continuassem levando uma vida normal, e o deslocamento de sentidos com o seu uso após o início do período de isolamento social, como um gesto discursivo de desinformação. “Não é mais possível tratar da dicotomia de produtores de texto e leitores: tudo é um só, e pode impactar os outros”, acrescenta.
No terceiro capítulo, o autor discute os diferentes pontos de vista de uma leitura. Comparando com o teatro, “toda leitura tem uma cena e um ponto de vista: perto ou longe, na fresta, no canto ou na pilastra, com diferentes perspectivas e incidências de luz”. A partir dessa reflexão, que pode se aplicar também às fotografias ou ao texto, convida a pensar sobre o papel do autor, do ambiente e do leitor no processo de leitura.
Ferreira discute, ainda, as tentativas de controlar os sentidos por quem domina um lugar de privilégio e a necessidade de dialogar e conviver com outros sujeitos leitores (e mesmo com avatares), negociando os sentidos na vida em sociedade.
Ele lembra que, na sociedade atual, muitas pessoas produzem sentidos escrevendo, ainda que seja nos seus comentários em redes sociais, e isso tem impactado a sociedade, produzindo, entre outros elementos, influenciadores, por um lado, e por outro, “cancelamentos” de pessoas nas redes sociais – com consequências que podem ir além do universo digital.
A proposta, que busca superar a leitura pedagógica atual, não tem necessariamente um foco em sala de aula, mas o pesquisador tem recebido retornos de que este modo de ler pode ser útil para o contexto educacional. “Seja na escola ou fora dela, espero que contribua para identificar possibilidades mais éticas de ler. A reflexão sobre quem diz, de onde diz, como o texto é transmitido e circula é importante para todos, sem subestimar as crianças e adolescentes como leitores”, acrescenta Ferreira.
Texto: Lidia Neves