Mulheres presas durante a gravidez sofrem com falta de apoio psicológico e têm suas maternidades negadas pelo Estado
Um elemento particular chama a atenção dos poucos visitantes que adentram um presídio feminino: roupas em miniatura penduradas nas grades, secando ao sol. Pequenas demais para as encarceradas, as vestimentas pertencem a “inquilinos” com estadia curta: os bebês. Durante seis meses, os filhos das mulheres que foram presas durante a gravidez permanecem com suas mães, para depois serem retirados pelo Estado e encaminhados para familiares ou abrigos, em um processo que deixa marcas profundas na mãe e no filho.
As roupas de bebê chamaram a atenção da psicóloga Luiza Ferreira, que em 2017 começou a trabalhar em um projeto social que acompanhava mães e filhos em uma penitenciária na capital de São Paulo. E foi a partir dessa experiência que a psicóloga desenvolveu no Instituto de Psicologia (IP) da USP a dissertação Quando a mãe é presa a casa cai: a separação, legalizada pelo Estado, de mulheres-mães e seus bebês em situação de cárcere
“Busquei entender o que sustenta o discurso de retirada das crianças”, explica a pesquisadora, que constatou uma falta de preocupação do Estado em garantir o bem-estar da criança e da mãe após a separação.
Luiza acompanhou a trajetória de duas mulheres e seus respectivos filhos durante dois anos. Em um dos casos analisados, o bebê foi encaminhado para um Serviço de Acolhimento Institucional vinculado à Prefeitura, no outro, foi entregue à família de origem. “Trabalhei a partir da escuta da singularidade de cada situação”, conta Luiza, que observou os processos judiciais e a atuação dos serviços sociais durante e após a separação.
Separação legalizada
Segundo a legislação na capital de São Paulo, os bebês que nascem no presídio devem ficar no mínimo seis meses com a mãe e, no máximo, dois anos. A lei se baseia em critérios biológicos, já que é recomendado que o bebê se alimente somente de leite materno até os 6 meses e que a amamentação prossiga junto com alimentos sólidos até pelo menos os 2 anos, para garantir mais proteção contra doenças e desnutrição. “É uma biologização das relações”, explica Luiza, criticando o descaso quanto ao vínculo afetivo entre mãe e filho.
Na prática, é difícil encontrar alguma mãe que fique mais de seis meses com o filho. “Em São Paulo, esse tempo mínimo é interpretado como máximo e, ao completar 6 meses, o bebê já é retirado do presídio”, conta Luiza. Após esse período, a criança é encaminhada para a casa de familiares e, segundo a pesquisadora, não há preocupação em garantir a adaptação do bebê no novo ambiente. “Muitas vezes o bebê fica com parentes que nunca sequer o visitaram”, explica, argumentando que várias mulheres são enviadas para presídios distantes e o processo de visita é custoso — tanto financeira quanto psicologicamente. Quando a família não pode ser contatada ou não aceita acolher o bebê, a criança é encaminhada para um Serviço de Acolhimento.
De um lado, os filhos são expostos a ambientes desconhecidos sem qualquer rede de apoio e apresentam dificuldades de adaptação; do outro, as mães enfrentam um luto traumático e solitário. O apoio institucional para a mãe é precário — há apenas uma psicóloga e uma assistente social para atender todas as presas de uma unidade — e a resposta para o luto do filho geralmente recai em prescrições de remédios psiquiátricos.
Da Hipermaternidade à Hipomaternidade
A falta de apoio às mães no cárcere foi sentida por Karina Dias, presa em 2010 por tráfico de drogas, aos sete meses de gravidez. Após a separação, seu bebê ficou quatro dias sem comer, porque não havia desmamado ainda e dependia do leite materno para se alimentar. “A médica só falou ‘tem que desmamar seu bebê’”, conta Karina, ressaltando que sentiu falta de orientações e acompanhamento médico para o desmame. “A criança não tem culpa pelo meu crime. E a separação é muito agressiva para a criança também”, relata.
Apesar de ter sido presa no fim da gestação, os dois meses que passou grávida no presídio foram difíceis. “Passei muito calor e cheguei a dormir no chão, porque a companheira de cela não me cedia a cama”, conta Karina. Ao fim da gravidez, foi levada algemada para um hospital, e permaneceu mobilizada até a intervenção de uma enfermeira, que solicitou a retirada das algemas para o parto. A liberdade foi pontual: nos quatro dias que permaneceu no hospital ficou presa pelo pé e pela mão na cama hospitalar.
Após o parto, Karina viveu seis meses em uma condição que os pesquisadores designam de “hipermaternidade”. Impossibilitadas de sair e trabalhar, as mães em situação de cárcere passam 24 horas por dia cuidando do bebê e não podem deixá-lo na creche ou com um familiar. “É uma ligação muito forte com a criança”, relata a ex-presidiária. E, de um dia para o outro, o bebê que consumia todo tempo de Karina foi retirado para viver com os avós paternos, em Minas Gerais.
“Foi o pior dia da minha vida”, lembra Karina, que relata ter sentido um vazio após a separação abrupta. Isoladas, as mães enfrentam a ausência do bebê sob protestos do corpo: o leite materno seca, em um processo doloroso que serve como lembrete da ausência.
O laço entre mãe e filho permaneceu rompido. Após sair do cárcere, viu o filho só uma vez, quando o menino tinha 2 anos. Hoje em dia ele tem 13. “Não foi o que eu imaginei. Falaram que o bebê seria meu, mas quando fui lá, percebi que ele já estava muito apegado à família do pai”, relata. Recém-egressa da prisão, Karina não tinha condições financeiras ou estabilidade para cuidar do menino, e deixou-o com os parentes, com quem ele vive até hoje.
Prisão domiciliar
Luiza defende que uma solução, ainda que provisória, para o trauma gerado pela separação são as medidas desencarceradoras. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) substituiu a prisão preventiva por prisão domiciliar para gestantes, lactantes e mães de crianças de até 12 anos ou pessoas com deficiência. A medida foi vista como um aceno progressista, que permitiria que mães e bebês permanecessem juntos. Na prática, não vem sendo efetiva. Um relatório elaborado pela ONG Instituto Terra Trabalho e Cidadania, em 2019, mostrou que a maioria das mães não recebe direito à prisão domiciliar e, as poucas que conseguem, ainda sofrem com as barreiras. “Acompanhamos uma mulher que não conseguia levar o filho na escola, porque ultrapassava em poucos metros a quilometragem que ela poderia percorrer”, conta a psicóloga.
Maternidades negadas
Mirna, nome fictício de uma das mulheres cujas trajetórias Luiza acompanhou, teve sua filha retirada e enviada para um abrigo pouco mais de seis meses após o parto. Quando ela saiu da penitenciária, alguns meses após a separação, foi proibida de visitar a filha no abrigo, após ter tido uma suposta recaída de drogas. “Ela caiu em um sofrimento profundo e não conseguiu corresponder ao que era esperado dela, porque eles não levaram em conta toda a produção de adoecimento a que ela foi submetida desde criança”, conta a psicóloga. Depois do acontecimento isolado, a filha de Mirna foi encaminhada para adoção.
Como Mirna, outras mulheres negras e pobres foram permanentemente separadas dos filhos. A partir desse acontecimento, Luiza busca sintetizar por que algumas maternidades são negadas pelo Estado. “Tem uma universalização do que é ser mãe e mulher que diz respeito a um ideal burguês e branco”, explica a pesquisadora. Segundo ela, as decisões do Judiciário, composto majoritariamente de homens brancos, são atravessadas por esses ideais da branquitude, que legitimam experiências maternas de mulheres brancas de classe alta e condenam mães negras e periféricas. Mesmo dentro do presídio, Luiza notou que mães brancas recebiam privilégios que não se estendiam às mulheres negras, como a possibilidade de acompanhar o bebê no hospital sem a roupa da penitenciária.
O discurso por trás da separação
A justificativa para a retirada dos bebês parte de uma suposta defesa das crianças, segundo Luiza. “Esse discurso neoliberal valida uma série de violações contra mulheres, como se garantir o direito das crianças fosse contrário ao direito da mãe”, afirma. Segundo a psicóloga, defende-se que a criança é um ser em desenvolvimento, e não um sujeito completo, uma visão desenvolvimentista que, inclusive, sustenta o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “Essa visão desliza rapidamente para uma leitura moralizante de que uma falha da mãe vai prejudicar o desenvolvimento da criança, o que justificaria a separação”.
E o discurso atravessa os muros do cárcere e se transforma em culpa. Algumas mães passam a acreditar que são responsáveis por estarem ali com seus filhos. “Na verdade é uma violência presente na estrutura, não no indivíduo”, explica a pesquisadora, que durante o trabalho em campo ouviu com frequência frases como “Meu filho está pagando pelo que eu fiz”.
Texto: Laura Pereira Lima, estagiária sob supervisão de Antonio Carlos Quinto/Jornal da USP