As oportunidades não são somente maiores para os ricos do que para os pobres em geral
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Uma pesquisa que cruzou dados de 1,12 milhão de alunos, resultados do Enem e informações do Censo da Educação concluiu que, em todos os níveis socioeconômicos, a desigualdade racial impacta a possibilidade de se matricular em faculdades.
As oportunidades não são somente maiores para os ricos do que para os pobres em geral. Pobres negros enfrentam mais dificuldade para entrar no ensino superior do que pobres brancos.
O estudo joga luz sobre o debate em torno da Lei de Cotas, que deve ser revisada pelo novo Congresso.
“Há, no Brasil, uma ideia de que há desvantagens apenas socioeconômicas e que os pretos são prejudicados porque são a maioria dentre os pobres, e não em razão do racismo”, diz Flavio Carvalhaes, um dos autores da pesquisa.
“Fomos, então, avaliar os resultados em cada faixa de renda. Se a desigualdade só tem a ver com isso, o resultado de brancos e pretos dentro do mesmo nível socioeconômico teria que ser igual. E não é isso o que acontece”, aponta ele, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Desigualdade da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pesquisador visitante do Instituto de Estudos da América Latina da Universidade Columbia (EUA).
Os outros autores da pesquisa são Adriano Souza Senkevics, doutor em educação pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador do Inep (órgão do Ministério da Educação), e Carlos Antônio Costa Ribeiro, doutor em sociologia pela Universidade Columbia, professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e autor do livro “Dimensão Social das Desigualdades”.
O levantamento tem sido debatido nas universidades e chega aos holofotes no momento em que se prevê uma revisão da Lei de Cotas, que determina que 50% das vagas das universidades federais sejam reservadas a alunos de escolas públicas e que, dentro desse universo, haja cotas para pretos, pardos e indígenas (PPIs) na proporção dessa população em cada estado.
“Estudos como esse são de extrema relevância no cenário atual, especialmente considerando o Congresso recém-eleito e o risco de que se mostre menos adepto de políticas afirmativas como a Lei de Cotas”, diz Anna Carolina Venturini, doutora em ciência política pela Uerj e pesquisadora do Afro-Cebrap (núcleo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
“Essa pesquisa, que se soma a outros estudos dessa área, comprova ser essencial combinar cotas sociais (que consideram a renda familiar e a conclusão do ensino médio em escola pública) com as cotas raciais. No Brasil, a cor/raça das pessoas é um fator adicional e estruturante das oportunidades educacionais.”
O estudo “A Intersecção entre Renda, Raça e Desempenho Acadêmico no Acesso ao Ensino Superior” cruzou a renda per capita das famílias dos estudantes, sua raça e o seu desempenho no Enem, prova que é utilizada para a seleção de candidatos por universidades públicas e particulares e também para a obtenção de auxílios do governo federal, como bolsas e financiamentos.
Foi analisado o desempenho de 1,12 milhão de alunos que se formaram no ensino médio do Brasil em 2012, ano da aprovação da Lei de Cotas. Por meio do CPF de cada um, a pesquisa verificou os resultados desses estudantes no Enem entre 2012 e 2016 e rastreou, no Censo da Educação Superior, quais deles se matricularam em faculdades entre 2013 e 2017.
Uma primeira conclusão é a de que o desempenho no Enem é afetado não apenas pela renda familiar como também pela desigualdade racial do país. Quanto maior a renda, melhor a nota. Além disso, em cada faixa de renda, os brancos têm notas sempre maiores do que os pretos, pardos e indígenas.
Na faixa de renda mais baixa, a de até 0,25 salário mínimo per capita (R$ 303, em valores atuais), a mediana das notas dos brancos é 468,83, e a dos pretos, pardos e indígenas, de 455,3.
A mediana é a nota central de cada grupo –50% dos alunos estão acima dessa marca, e os outro 50%, abaixo.
Na faixa de maior renda, com mais de 1,75 salário mínimo per capita (R$ 2.121 em valores atuais), a mediana das notas dos brancos é de 610,13, e a dos pretos, pardos e indígenas, de 585,83.
A desigualdade racial também se observa na entrada do ensino superior brasileiro -que engloba não somente o Enem, mas também outros vestibulares de universidades públicas e privadas. A taxa daqueles que se matriculam em faculdades é maior para os mais ricos, e, além disso, dentro de cada faixa de renda familiar, é sempre mais alta para os brancos do que para os pretos, pardos e indígenas.
Dentre os jovens que prestaram o Enem e são de famílias que ganham até 0,25 salário mínimo per capita, 55% dos brancos entraram no ensino superior, enquanto no caso dos PPIs o número cai para 44%. A desigualdade se reduz com o aumento da renda, mas não desaparece. Na faixa das famílias acima de 1,75 salário mínimo per capita, a diferença é de 96% para 94%.
O levantamento também analisou o desempenho no Enem como fator para a entrada no ensino superior. A conclusão é a de que os mais pobres são mais dependentes de uma boa nota no exame para entrar nas faculdades do que os mais ricos.
Da mesma forma, nesse quesito existe desigualdade entre os brancos e os pretos, pardos e indígenas, embora a diferença se reduza e eventualmente até desapareça no caso dos mais ricos.
Dentre os alunos da faixa de renda mais baixa e com as piores notas, entraram na faculdade 33% dos brancos e 25% dos PPIs.
Entre os mais ricos com as piores notas, entraram 79% dos brancos e 76% dos PPIs. E, para os mais ricos com as melhores notas, a entrada foi de 98% dos brancos e 97% dos PPIs.
“O aluno rico, se não tirou uma nota competitiva no Enem, vai para uma faculdade privada. O pobre, não”, ressalta Carvalhaes. “Para o rico, é natural que faça ensino superior, independentemente do desempenho nos estudos. Para os jovens de famílias de baixa renda, o resultado do Enem não só pode garantir ou não uma vaga na universidade pública, como acaba influenciando a decisão de desistir ou não dos estudos”, avalia.
Os novos dados, segundo o sociólogo, mostram que a perspectiva educacional de um jovem sofre interferência do racismo histórico e estrutural no país, em que pretos, pardos e indígenas têm uma herança de gerações com menos oportunidades do que brancos. Além disso, “os mecanismos de estereótipos e de discriminação que ainda existem no ambiente escolar podem levar alunos de grupos raciais desprivilegiados a terem desempenho e expectativa educacional menor”.
A pesquisa considerou os estudantes pretos, pardos e indígenas conjuntamente porque os programas de cotas também os agregam dessa maneira -de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os pardos são 47% da população brasileira, os pretos, 9%, e os indígenas, menos de 0,5%.
A revisão da Lei de Cotas (12.711/2012), teoricamente, ainda poderia ser feita pela legislatura atual, mas, com o final do ano se aproximando, a expectativa de quem acompanha essa pauta em Brasília é a que fique para os congressistas que tomam posse em 1º de fevereiro de 2023.
Até que a revisão aconteça, segundo Venturini, o entendimento predominante é o de que as regras atuais seguem válidas.