A violência, assassinato de pessoas negras, em operações brutais das policiais brasileiras são consideradas pela ONU como uma forma de racismo das forças de segurança do Brasil. O hábito da Polícia é dizer publicamente que houve “confronto”, como justificativa para os assassinatos. No entanto, as policiais resistem ao uso de câmeras corporais, para provar ao que afirmam
A 57a sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, realizada entre 9 de setembro e a última sexta-feira (11), entre os diversos relatórios debatidos, estava o de número “A/HRC/57/71/Add.1”, intitulado “Visita ao Brasil – Relatório do Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para Promover a Justiça Racial e a Igualdade na Aplicação da Lei.” O documento analisou a impunidade das forças policiais brasileiras no uso de força excessiva contra afrodescendentes, chamada claramente de “racismo sistêmico” de por parte da polícia brasileira.
Os dados debatidos no órgão da ONU são confirmados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, na sua adição mais recente, a de 2024. No gráfico, o Anuário aponta que a maioria dos mortos pelas forças policiais são negros. “A análise do local em que se deram as ocorrências mostra que a rua (via pública) segue sendo o local mais frequente para estas ocorrências. Em 19,5% dos registros apareceu residência como o local do suposto confronto, mas não é possível saber se o local era a residência da vítima ou se ela foi morta no interior de alguma residência”, afirma o Anúário.
Pessoas africanas e afrodescendentes que sofreram uso excessivo da força e outras violações de direitos humanos por parte de agentes da lei enfrentam ampla e contínua impunidade, revela um novo relatório. O Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para Promoção de Justiça e Igualdade Racial na Aplicação da Lei apresenta o documento ao Conselho de Direitos Humanos nesta quarta-feira, em Genebra, juntamente com as conclusões das visitas ao Brasil e à Itália.
Racismo sistêmico
No Brasil, o mecanismo constatou que o racismo contra pessoas afrodescendentes é sistêmico e generalizado. Devido a uma prática sistêmica de perfilamento racial por parte da polícia, os afro-brasileiros têm três vezes mais probabilidades de serem mortos pela polícia.
Os especialistas disseram que, além disso, os direitos das vítimas à justiça, à verdade, às reparações e às garantias de não repetição foram “raramente cumpridos” e recomendaram várias medidas que os Estados devem tomar para proporcionar justiça, responsabilidade e reparação.
A presidente do Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para Promoção de Justiça e Igualdade Racial na Aplicação da Lei, Akua Kuenyehia, afirma que as “manifestações de racismo sistêmico contra pessoas africanas e afrodescendentes pela aplicação da lei e nos sistemas de justiça criminal ainda são predominantes em muitas partes do mundo, e a ampla impunidade persiste”.
Recomendações para ação
A especialista Tracie Keesee, que integra o grupo, adicionou que pessoas e comunidades afetadas pela violência e má conduta policial relataram dificuldades que enfrentam ao exigir justiça, responsabilidade e reparação por violações cometidas por agentes da lei.
No relatório apresentado para a 57ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, o mecanismo de especialistas avaliou as barreiras enfrentadas por pessoas africanas e afrodescendentes ao exigir justiça, responsabilidade e reparação.
Fim da impunidade
O documento destacou as medidas mínimas necessárias para combater a impunidade, complementadas por recomendações específicas voltadas para a ação. As recomendações incluem a elaboração de relatórios, revisão e procedimentos de investigação, o estabelecimento de órgãos independentes de supervisão civil para a aplicação da lei e a criação de mecanismos independentes de apoio às vítimas e às comunidades.
Para o especialista Víctor Rodríguez Rescia, os Estados devem investir na criação de instituições sólidas para proporcionar efetivamente justiça, responsabilidade e reparação às vítimas.
Ele adiciona que as nações têm o dever de cumprir o direito da vítima à reparação de forma imediata, adequada e eficaz, e é necessário um apoio abrangente e holístico para chegar a esse objetivo.
Relatório diz que em 10 anos, 54.175 pessoas foram mortas por policiais
- O Mecanismo (o grupo de estudo da ONU) está alarmado com os números e as circunstâncias nas quais as pessoas são assassinadas pela polícia no Brasil. Nos últimos dez anos, 54.175 pessoas foram mortas por policiais no país, com mais de 6.000 indivíduos mortos todos os anos (17 todos os dias) nos últimos seis anos. As mortes causadas pela polícia aumentaram significativamente de 2.212 em 2013 para 6.393 em 2023. O dado mais recente representa 13% do total de mortes violentas intencionais no país. Das 6.393 pessoas mortas pela polícia em 2023, 99,3% eram homens; 6,7% crianças entre 12 e 17 anos; e 65% eram jovens adultos: 41% tinham entre 18 e 24 anos e 23,5% entre 25 e 29 anos.
- Os dados disponíveis mostram que as pessoas afrodescendentes têm três vezes mais chances de serem mortas pela polícia do que as pessoas brancas, com 82,7% dos assassinatos cometidos pela polícia em 2023 sendo de pessoas afrodescendentes em comparação com 17% de pessoas brancas, com uma taxa por de 3,5 a cada 100.000 habitantes para pessoas afrodescendentes contra 0,9 para pessoas “brancas”. Esses dados revelam ainda que os mais afetados pela letalidade policial são jovens afrodescendentes que vivem na pobreza em áreas empobrecidas.
- Nas diferentes cidades visitadas, o Mecanismo ouviu inúmeros testemunhos de partir o coração, de filhos, irmãos e sobrinhos mortos por policiais, enquanto realizavam suas atividades diárias, seja indo ao trabalho, encontrando-se com amigos, participando de uma festa, cumprindo uma tarefa qualquer ou voltando para casa. Os depoimentos apontam para um padrão de comportamento de autoridades policiais de plantar evidências, incluindo armas de fogo ou drogas nas cenas das execuções para “enquadrar” a vítima e justificar sua morte. As informações recebidas destacam vários casos de mortes de pessoas africanas e afrodescendentes pela polícia durante operações realizadas após a morte de um policial em serviço ou à paisana, repletas do desejo de vingança pela morte do companheiro caído e resultando em execuções extrajudiciais durante as operações.
- O Mecanismo observa com profunda preocupação vários exemplos de operações policiais recentes que resultaram em múltiplos casos de assassinatos de pessoas afrodescendentes pelas forças policiais. Em maio de 2021, uma intervenção policial na comunidade de Jacarezinho, no Rio de Janeiro, levou a 29 mortes relatadas, com relatos de testemunhas oculares alegando que a polícia entrou em residências civis e realizou execuções extrajudiciais. Em maio de 2022, um suposto confronto entre forças policiais militares e federais e uma organização criminosa na comunidade Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, culminou em no mínimo 26 mortes relatadas. Em apenas dois meses, entre julho e setembro de 2023, pelo menos 83 pessoas foram mortas pela polícia em diferentes operações no estado da Bahia. Em agosto de 2023, depois que um policial foi morto, a Polícia Militar de São Paulo iniciou uma operação policial de 40 dias para combater o crime organizado na Baixada Santista, uma área no litoral de São Paulo, durante a qual pelo menos 28 pessoas foram mortas. Em fevereiro de 2024, outra operação semelhante na Baixada Santista levou a 45 mortes no mesmo número de dias.
- Diante dos dados disponíveis e dos depoimentos recebidos, o Mecanismo considera que a maioria dos casos suspeitos de uso excessivo da força, assassinatos, desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais por policiais no Brasil não são atos isolados de violência; em vez disso, demonstram um padrão alarmante que aponta para um problema sistêmico profundamente enraizado que precisa ser enfrentado como tal. As mortes de pessoas afrodescendentes pelas forças policiais no Brasil não são apenas generalizadas em muitas partes do território, mas também são realizadas de forma sistemática, o que sugere que podem ser usadas como um processo de limpeza étnica social destinado a exterminar setores da sociedade considerados indesejáveis, perigosos ou criminosos.
Órgão da ONU cobra responsabilização
- Durante a visita, o Mecanismo ouviu incontáveis vezes, diretamente das vítimas, sobre a falta de responsabilização em casos relacionados a abusos policiais. Ouviu falar de casos não investigados, perpetradores não processados que continuam impunes e casos encerrados sem que culpados fossem levados à justiça. O Mecanismo ouviu sobre a desconfiança geral no sistema de justiça criminal com base nessas experiências; o medo de apresentar denúncias devido a retaliações; e a falta de independência e recursos de órgãos de controle internos e externos, incluindo o Ministério Público, e instituições forenses.
- O Mecanismo recebeu depoimentos sobre táticas de retaliação e intimidação por parte da polícia com testemunhas, vítimas e familiares, advogadas, advogados e pessoas defensoras de direitos humanos das vítimas de violência policial. O Mecanismo também soube como, em sua busca contínua por justiça, familiares, principalmente mulheres afrodescendentes, muitas vezes enfrentam ameaças, intimidações, represálias e estigmatização das próprias autoridades que deveriam apoiá-las. Essas e esses familiares, em sua maioria mulheres negras, enfrentam desafios ao seu bem-estar mental e físico, recebendo pouco ou nenhum apoio ou assistência do governo. A partir desses relatos, o Mecanismo percebeu a profunda desumanização das comunidades pobres afrodescendentes nas periferias.
- O Mecanismo foi informado sobre as sérias lacunas no Brasil nos processos de inquérito sobre assassinatos cometidos por policiais e as deficiências substanciais no processo investigativo, incluindo a falta de independência. As medidas internas de responsabilização, em que a polícia civil investiga a polícia militar, fomentam um conflito de interesses que compromete a credibilidade e a imparcialidade das investigações. Essa estrutura de investigação interna não atende aos padrões exigidos para um escrutínio justo e imparcial da conduta policial. Qualquer sistema que empregue policiais como investigadores em casos contra outros policiais tende a ser parcial. A existência de uma cultura policial interna de proteger uns aos outros em qualquer caso não ajuda nesse sentido. Outras falhas sistêmicas na coleta de evidências e na realização de autópsias também foram mencionadas, como atrasos injustificados, exames forenses insuficientes e falta de transparência, especialmente para as famílias. Além disso, o testemunho dos policiais tende a ter mais peso do que outras evidências, levando a um viés geral a seu favor e a absolvições recorrentes. Essas práticas dificultam a responsabilização e obstruem a justiça para as vítimas e seus familiares, e demonstram o não cumprimento das normas internacionais, como o Manual sobre a Investigação Eficaz e Documentação da Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Protocolo de Istambul) e o Protocolo de Minnesota sobre a Investigação de Mortes Potencialmente Ilícitas.
- O Mecanismo saúda as informações recebidas de que algumas áreas do Ministério Público estadual estão formando unidades especializadas para investigar e processar crimes cometidos por policiais. Mesmo assim, o Mecanismo observou que essas unidades carecem de recursos suficientes para realizar seu trabalho com sucesso e de forma independente. Ouvidorias, que existem em alguns estados, como São Paulo, e que desempenham um papel na investigação e julgamento de casos de denúncia de má conduta policial, também enfrentam similar escassez de recursos.
Serviço:
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