A revista cientifica Science, publicada pela Associação Americana para o Avanço da Ciência e considerada, ao lado da revista Nature, uma das publicações acadêmicas mais prestigiadas do mundo trouxe na sua última edição, publicada na última quarta-feira (7) um texto estarrecedor para o mundo acadêmico mundial. Trouxe como título: “Um ambiente hostil, cientistas brasileiros enfrentam os crescentes ataques do regime bolsonaro”.
No texto assinado pelo jornalista Herton Escobar, a publicação inicia narrando que, na semana passada, cientistas do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a principal agência brasileira para estudar e administrar as vastas áreas protegidas do país, tiveram que começar a obedecer a uma nova regra indesejada. Ela dá a um dos principais funcionários do ICMBio a autoridade de revisar todos os “manuscritos, textos e compilações científicas” antes de serem publicados.]
Censura
De acordo com a Science, os pesquisadores temem que a administração do presidente Jair Bolsonaro, que tem uma relação marcadamente hostil com a comunidade científica brasileira, utilize as revisões para censurar estudos que conflitam com seus esforços contínuos para enfraquecer as proteções ambientais. A administração diz que não é essa a intenção.
Mas o movimento se soma aos recentes desenvolvimentos que agitaram muitos cientistas brasileiros e deixaram aqueles que são críticos das políticas de Bolsonaro temendo por seus empregos e até mesmo por sua segurança física, prossegue a publicação cientifica america. “A ciência está sendo atacada em várias frentes”, diz Philip Fearnside, um ecologista veterano do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).
“Há negação da pandemia, negação da mudança climática, negação do desmatamento; para não mencionar os cortes no orçamento”. As queixas de Bolsonaro junto aos cientistas remontam ao início de sua administração em 2019. Então, ele acusou o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais de “mentir” sobre dados de satélite mostrando o aumento do desmatamento na Amazônia e demitiu seu diretor, o físico Ricardo Galvão, depois que ele defendeu os números.
Fase ainda mais tensa
Desde então, Bolsonaro se chocou com os pesquisadores por questões como sua persistente rejeição às estratégias baseadas na ciência para combater a pandemia da Covid-19, que já matou pelo menos 330.000 brasileiros. Mas a relação parece ter entrado em uma fase ainda mais tensa nos últimos meses.
Um exemplo veio em fevereiro, quando a principal agência anticorrupção do Brasil, a Controladoria Geral da República, informou ao epidemiologista Pedro Hallal, ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas, que ele poderia perder seu emprego por causa das críticas que fez ao Bolsonaro em janeiro, durante um evento on-line. Hallal, que coordena o maior projeto de pesquisa epidemiológica do Brasil na Covid-19, havia chamado Bolsonaro de “desprezível”, citando a retórica antivacinação do presidente e sua interferência política na seleção dos reitores universitários.
Poucas semanas antes, o Ministério da Educação de Bolsonaro havia ordenado que os reitores de todas as 69 universidades federais, que empregam a maioria dos cientistas brasileiros, “prevenissem e punissem atos político-partidários” por parte dos funcionários. Após um protesto, o ministério no mês passado retirou a ordem, e Hallal finalmente chegou a um acordo com a Controladoria, prometendo não “promover expressão de apreço ou desaprovação no local de trabalho” por 2 anos.
Hallal continua desafiando. “Se a idéia era me silenciar, eu tenho que dizer que o tiro saiu pela culatra”, diz ele. “Está me motivando a ser ainda mais crítico e a dizer o que precisa ser dito”. Mas ele teme que o clima político esteja silenciando alguns de seus colegas. “Muitas pessoas estão dizendo menos do que gostariam, por medo de represálias”.
Auto censura nos estudos
Os cientistas também estão reconsiderando o que estudam e publicam, diz Marcus Lacerda, um especialista em doenças infecciosas da Fundação Oswaldo Cruz em Manaus, Brasil. No ano passado, ele enfrentou intensas investigações de promotores federais – e recebeu ameaças de morte – depois que publicou um trabalho destacando os riscos à saúde de dar o medicamento cloroquina aos pacientes da Covid-19. (Bolsonaro promoveu fortemente a cloroquina, apesar de estudos concluindo que ela é ineficaz contra a Covid-19).
“Muitas pessoas têm medo de publicar depois do que aconteceu comigo”, diz Lacerda. Colegas abandonaram a pesquisa do coronavírus, acrescenta, a fim de evitar o assédio on-line por parte da chamada “milícia digital Bolsonaro”. Em um caso, o assédio on-line parece ter se intensificado para um ataque físico. Depois que o biólogo Lucas Ferrante, candidato a doutorado no INPA, publicou artigos em revistas de alto nível (incluindo Science) criticando as políticas ambientais e de saúde de Bolsonaro, seus relatos no celular e nas mídias sociais foram iluminados com mensagens ameaçadoras.
Ameaça na rua
Então, em novembro de 2020, ele diz ter sido atacado por um homem dirigindo o que ele pensava ser um veículo Uber que ele havia saudado; o homem disse a Ferrante que “precisava se calar” e o atacou com um objeto pontiagudo. Desde então, Ferrante diz que tem sido cauteloso em deixar sua casa e carrega um celular que não está ligado ao seu nome.
Esta semana, um grupo de pesquisadores brasileiros citou preocupações de segurança ao explicar por que não assinaram seus nomes em um livro branco, publicado pela Rede de Ciências Sociais do Clima da Universidade de Brown, que descreve os esforços de Bolsonaro para desmantelar as proteções ambientais. Eles decidiram permanecer anônimos “por razões de segurança e considerando o cenário político atual no Brasil”, escreveram eles.
No ICMBio, a nova regra de supervisão dá autoridade de revisão ao diretor de pesquisa em biodiversidade do instituto, um dos quatro diretores do ICMBio que servem sob a presidência do instituto. Em uma declaração, os funcionários do instituto retrataram a ordem como simplesmente uma mudança burocrática, observando que o presidente do ICMBio tinha anteriormente autoridade de revisão. “Não há censura”, afirma o comunicado.
Censores sem conhecimento técnico
Mas os pesquisadores observam que nenhum dos altos funcionários do ICMBio é um cientista treinado para conduzir revisões técnicas; todos são ex-policiais militares ou bombeiros. Uma regra semelhante foi emitida no mês passado no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada do Brasil, uma proeminente instituição federal de pesquisa.
Os cientistas brasileiros também estão enfrentando uma crise de financiamento cada vez maior. Os gastos do governo com pesquisa diminuíram em mais de 70% em relação ao pico de 2014, e o governo Bolsonaro cortou recentemente 34% do orçamento de investimentos do Ministério da Ciência para este ano.
A principal agência federal de financiamento do país, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, deve ter menos de US$ 4 milhões disponíveis para bolsas de pesquisa este ano. Os problemas de financiamento e os constantes conflitos estão desgastando os pesquisadores brasileiros, diz Mercedes Bustamante, ecologista da Universidade de Brasília e co-fundadora da Coalizão Ciência e Sociedade, um grupo criado em 2019 para promover políticas baseadas na ciência.
“Estou tão cansada de ter que me defender o tempo todo”, diz ela. “Enquanto isso, todas as questões importantes que realmente deveríamos estar enfrentando estão sendo deixadas para trás”. A maioria dos cientistas brasileiros “não está acostumada a funcionar em um ambiente tão hostil”, acrescenta Atila Iamarino, microbiologista e comunicadora científica de destaque.