Barragem se rompeu em novembro de 2015, deixando 19 mortos, mais de 520 residências destruídas, matou os peixes do Rio Doce, entre outros problemas que afetaram economicamente a população no entorno desse rio
Durante webinário de apresentação do relatório final do Painel do Rio Doce, especialistas nacionais e internacionais consideraram que a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem ocorrido em Mariana (MG) há mais de sete anos exige ainda acompanhamento e ações de longo prazo. No evento ocorrido nesta última semana e transmitido pela internet, a Fundação Renova, entidade criada para administrar as medidas estipuladas em acordo firmado entre as mineradoras e os governos envolvidos, reconheceu enfrentar problemas decorrentes do desenho do processo reparatório. As informações são da Agência Brasil.
“É importante que sejam implementadas ações que acelerem o retorno dessa biodiversidade, mas é fundamental que se entenda que esse não é um processo de curto e de médio prazo. Esse é um processo de longo prazo e que precisa de ações coordenadas”, disse o professor de ecologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Francisco Barbosa, um dos membros do painel. Ele destacou o trabalho no Rio Gualaxo do Norte, afluente do Rio Doce fortemente atingido pelos rejeitos, onde está sendo desenvolvido pela Fundação Renova um projeto de renaturalização do leito, com técnicas inovadoras que ajudam a encurtar o tempo de recuperação ambiental.
Ainda há danos não identificados
Barbosa também apontou que existem novos danos ainda serão identificados e cita os rejeitos que permanecem acumulados no reservatório da Usina de Candonga, que na época funcionou como uma barreira para boa parte da lama liberada no ambiente. O especialista explicou que, de tempos em tempos, sobretudo nos períodos chuvosos, parte desse material escoa ao longo do Rio Doce. “O processo de reparação deve ser de longo prazo para identificar problemas e respostas”, reiterou.
A barragem, que integrava o complexo minerário da Samarco em Mariana, se rompeu em novembro de 2015, deixando 19 mortos e causando impacto a dezenas de cidades mineiras e capixabas situadas ao longo da bacia do Rio Doce. O acordo para reparação dos danos foi assinado em março de 2016, por meio de um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC). Participaram das negociações o governo federal, os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, a Samarco e suas acionistas Vale e BHP Billiton.
Com base no acordo, foi criada a Fundação Renova, responsável por gerir todas as medidas reparatória previstas. Elas envolvem, por exemplo, a reconstrução das comunidades destruídas, o reassentamento de famílias desabrigadas, o pagamento de indenizações aos atingidos e a recuperação ambiental.
O Painel do Rio Doce, por sua vez, foi estruturado em 2017 e é administrado pela organização não governamental União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). A Fundação Renova aprovou a sua contratação ao custo de US$ 959,4 mil ao ano, o que na cotação da época apontava para um valor superior a R$ 15 milhões pelos cinco anos de duração dos trabalhos.
De acordo com a UICN, o Painel do Rio Doce surge ao encontro do interesse das mineradoras e da Fundação Renova em contar com uma consultoria internacional independente capaz de identificar as melhores práticas corporativas globais e as perspectivas baseadas na ciência em matéria de reparação. Ao longo dos cinco anos, os trabalhos mobilizaram ao todo 11 especialistas, inclusive ex-ministros de Meio Ambiente do Peru e do Equador. Segundo o UICN, os membros foram nomeados por meio de processos abertos e competitivos.
Balanço
O relatório final apresentado nesta última quinta-feira (27) faz um balanço dos trabalhos. Outros dez documentos já haviam sido produzidos pelo painel, nos quais foram propostos direcionamentos para o processo reparatório. Entre eles cinco relatórios temáticos que versam sobre temas como qualidade da água, monitoramento ambiental, práticas sustentáveis, restauração da biodiversidade e mitigação de impactos.
Os especialistas reconhecem que não conseguiram abordar alguns temas relevantes, como o manejo dos rejeitos depositados na Usina de Candonga. A dragagem e retirada desse material não foram concluídas até hoje e se tornaram o centro de uma controvérsia judicial. Além disso, as recomendações produzidas tiveram maior enfoque em aspectos ambientais, tratando de aspectos sociais e econômicos de forma secundária: não houve aprofundamento, por exemplo, em temas como reassentamento e indenização.
De acordo com a Fundação Renova, foram recebidas 35 recomendações. Representantes da entidade presentes no webinário destacaram que uma das principais contribuições do Painel do Rio Doce esteve relacionada com a criação de uma metodologia de identificação dos impactos nos ambientes costeiros do Espírito Santo.
Repactuação
Passados mais de sete anos, a reconstrução de comunidades destruídas ainda não foi concluída, e controvérsias marcam o processo indenizatório. A atuação da Fundação Renova tem sido alvo de muitos questionamentos judiciais e está em curso a negociação de um novo acordo para repactuar o processo reparatório.
As discussões tiveram início no ano passado com uma mediação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que chamou para si a tarefa de buscar uma solução consensual capaz de encontrar uma caminho para contornar a avalanche processual em torno da tragédia: estima-se que haja mais de 85 mil ações judiciais em tramitação. As tratativas, no entanto, ainda não resultaram em um acordo.
O protagonismo da Fundação Renova no processo reparatório é um ponto de divergência. O Ministério Publico de Minas Gerais (MPMG) e o Ministério Público Federal (MPF) já defenderam abertamente um outro modelo de governança sem a participação da entidade. Eles defendem que os novos termos a serem pactuados tenham como referência o acordo de reparação da tragédia que ocorreu em Brumadinho (MG) em 2019, envolvendo o rompimento de uma barragem da Vale.
O MPMG inclusive já chegou a pedir judicialmente a extinção da Fundação Renova, alegando que ela não goza da devida autonomia frentes às mineradoras. A atuação da entidade também é criticada por comissões de atingidos. No entanto, elas não foram chamadas para as mesas de negociação da repactuação e reclamam do sigilo das tratativas.
Participação
Para o presidente da Fundação Renova, Andre de Freitas, problemas ocorreram envolvendo diretrizes do TTAC que não estavam suficientemente claras, gerando diferentes interpretações e, consequentemente, judicialização. “Há um desafio de origem, da falta de clareza e definição do que deve ser feito”, avaliou. Ele reconhece que a participação da sociedade civil e da população atingida no processo reparatório ficou aquém do que deveria ser.
Durante o webinário, Freitas também avaliou que algumas discussões técnicas são infindáveis e inconclusivas. “Gastamos centenas de milhões de reais em perícias e estudos que não levam a uma clareza do que deve ser feito. Esses recursos poderiam ser mais bem utilizados para ações de desenvolvimento econômico, de saneamento, etc.” Ele ressaltou que a Fundação Renova não participa das discussões sobre a repactuação, mas disse esperar que um novo acordo enfrente esses problemas e instaure uma lógica mais negocial.
José Carlos Carvalho, que foi ministro do Meio Ambiente durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e que mediou o webinário, defendeu uma maior participação social no processo de reparatório. Em sua visão, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CBH-Rio Doce) deve ser fortalecido. Previstos em lei, os comitês de bacia hidrográfica contam com representantes de diferentes segmentos da sociedade. Eles participam de decisões envolvendo os recursos hídricos, compartilhando responsabilidades de gestão com o poder público.
“Não é compreensível que, no atual momento de repactuação, a representação dos atingidos e o comitê não estejam participando da maneira adequada. Acho que o comitê, por força das próprias competências que possui em lei, deve exigir do poder público a sua participação nesse processo”, disse.