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Science News: Os povos indígenas podem ter criado a ‘terra escura’ da Amazónia de propósito


O solo fértil pode ser uma fonte maciça e negligenciada de carbono armazenado


Numa tradição que pode ter milhares de anos, o povo indígena Kuikuro, no Brasil, ultrapassa esta questão ao fazer o seu próprio solo fértil a partir de cinzas, restos de comida e queimaduras | Imagem: Reprodução revista Science

Reprodução de artigo de Freda Kreier, na revista Science News:

Os povos indígenas na Amazónia podem ter criado deliberadamente solo fértil para a agricultura durante milhares de anos.

Em sítios arqueológicos da bacia do rio Amazonas, manchas misteriosas de solo invulgarmente fértil pontilham a paisagem. Os cientistas debateram durante muito tempo a origem desta “terra escura”, que é mais escura do que os solos circundantes e mais rica em carbono.

Agora, os investigadores mostraram que os indígenas Kuikuro do sudeste do Brasil criam intencionalmente um solo semelhante em torno das suas aldeias. A descoberta, apresentada a 16 de dezembro na reunião da União Geofísica Americana, acrescenta evidências à ideia de que os amazônicos de longa data também fabricavam deliberadamente esse solo.

O fato do povo de Kuikuro fazer hoje terra escura é um “argumento bastante forte” de que as pessoas também a faziam no passado, diz Paul Baker, um geoquímico da Duke University, que não estava envolvido na investigação.

Ao fazê-lo, estes primeiros habitantes podem ter armazenado inadvertidamente grandes quantidades de carbono no solo, diz o apresentador do estudo Taylor Perron, um cientista da terra no MIT. A técnica, diz ele, poderia fornecer um plano para o desenvolvimento de métodos de fixação sustentável do carbono atmosférico em solos tropicais, ajudando a combater as alterações climáticas.  

Os povos indígenas têm alterado a Amazónia durante milhares de anos

O mundo ocidental há muito que vê a Amazónia como uma vasta região selvagem que estava relativamente intocada antes dos europeus aparecerem. No centro deste argumento está a ideia de que o solo da Amazónia, pobre em nutrientes como outros solos tropicais, impediu os seus habitantes de desenvolver uma agricultura a uma escala necessária para apoiar sociedades complexas.    

Mas uma série de descobertas arqueológicas nas últimas décadas – incluindo a descoberta de antigos centros urbanos nas áreas amazónicas da Bolívia moderna – revelou que as pessoas moldaram ativamente a Amazónia durante milhares de anos antes da chegada dos europeus.

Hoje em dia, a maioria dos cientistas concorda que a presença de terra escura perto de sítios arqueológicos significa que os amazônicos de longa data utilizavam este solo para cultivar culturas. Mas enquanto alguns arqueólogos argumentam que as pessoas fizeram propositadamente o solo, outros afirmam que a terra escura foi colocada através de processos geológicos.

Perron e colegas reviram entrevistas do povo Kuikuro conduzidas por um cineasta Kuikuro em 2018. Estas conversas revelaram que os habitantes de Kuikuro fazem ativamente terra escura – eegepe em Kuikuro – utilizando cinzas, restos de comida e queimaduras controladas.

“Quando se planta onde não há eegepe, o solo é fraco”, explicou o ancião Kanu Kuikuro numa das entrevistas. “É por isso que atiramos as cinzas, as cascas de mandioca e a polpa de mandioca”.

Os investigadores recolheram amostras de solo em redor de aldeias de Kuikuro e sítios arqueológicos na bacia do rio Xingu no Brasil. A equipa encontrou “semelhanças notáveis” entre amostras de terra escura de sítios antigos e modernos, diz Perron. Ambos eram muito menos ácidos que os solos circundantes – provavelmente graças ao efeito neutralizante das cinzas – e continham níveis mais elevados de nutrientes amigos das plantas.

O solo que tem uma semelhança impressionante com a terra escura pode ser encontrado nas aldeias de Kuikuro (uma vista aqui de cima) no sudeste do Brasil e arredores | Imagem: Google Earth/Naxxar Technologies/Sience News

A terra escura poderia armazenar muito carbono na Amazónia

Estas análises também revelaram que a terra escura contém em média o dobro da quantidade de carbono que os solos circundantes. As análises por infravermelhos da região do Xingu sugerem que a área está embebida em terra escura, e que cerca de 9 megatons de carbono – as emissões anuais de carbono de um país pequeno e industrializado – podem não ter sido contabilizadas na área, informaram os investigadores na reunião. 

Este número, embora preliminar, poderia inflacionar para aproximadamente as emissões anuais de carbono dos Estados Unidos quando toda a terra escura da Amazónia for tida em consideração, diz Perron.

Descobrir quanto carbono está realmente armazenado na Amazónia poderia ajudar a melhorar as simulações climáticas. Mas as estimativas dos investigadores são uma “enorme extrapolação a partir de um conjunto de dados muito pequeno”, adverte Baker – um sentimento ecoado por Perron.

A diminuição do verdadeiro valor do carbono armazenado na terra escura da Amazónia exigirá mais dados, diz Antoinette WinklerPrins, uma geógrafa da Universidade Johns Hopkins que não esteve envolvida no estudo. Ainda assim, a investigação tem “profundas implicações do passado e do futuro” da Amazónia, diz ela.

Por um lado, a técnica destaca como as pessoas antigas foram capazes de prosperar na Amazónia, desenvolvendo uma agricultura sustentável que duplicou como técnica de sequestro de carbono. Com cada vez mais gases com efeito de estufa a entrar na atmosfera, fazer terra escura – ou algo parecido – poderia ser um método de mitigação das alterações climáticas enquanto se apoia a agricultura nos trópicos.

“As pessoas no passado antigo descobriram uma forma de armazenar muito carbono durante centenas ou mesmo milhares de anos”, diz Perron. “Talvez possamos aprender alguma coisa com isso”.