Esse é o drama nacional: um país cujas principais instituições não consolidaram princípios democráticos. E, por trás de tudo, as ondas que vêm dos centros políticos internacionais, de que todo arbítrio será tolerado, e nenhuma negociação será aceita
Luis Nassif/Reprodução do portal GGN
Peça 1 – o desmonte da velha ordem
O mundo que conhecemos acabou. E o que vem pela frente é uma incógnita total. É o que está na raiz de todos os fenômenos políticos atuais, golpes de Estado, guerras, avanço da ultradireita, intolerância. Todos têm uma fonte comum: a crise da velha ordem do pós-guerra, que garantia um mínimo de regras para administração de conflitos. Com exceção dos golpes de Estado em algumas regiões do planeta – como na América do Sul – a democracia ocidental garantiu um período de estabilidade, que começa a entrar em crise já nos anos 70, com o avanço da financeirização e da desregulação da economia.
Seguiu-se um período de aprofundamento da miséria, de destruição de estados nacionais, somado à desorganização do mercado de informações, com o avanço das redes sociais. Comprometeu-se irreversivelmente o multilateralismo do pós-Segunda Guerra e o modelo de democracia ocidental. As regras em vigor não garantem mais a estabilidade política. Em todos os níveis, há um descolamento da opinião pública dos movimentos da política.
Criam-se vácuos, que abrem espaço para vírus desestabilizadores infiltrando-se em todos os poros da política, não apenas nos bolsões da ultradireita. E qualquer pedaço de pau é utilizado de bóia, até guerras de ocupação.
Peça 2 – os vácuos políticos e a guerra da Ucrânia
O que se observa hoje, na guerra da Ucrânia, é a marcha da insensatez em todos os níveis. Mas é um capítulo importante para analisar o efeito-boia.
Vladimir Putin planejou a invasão da Ucrânia baseado em um quadro internacional sem o elemento guerra.
1. Nos Estados Unidos, a liderança débil de Joe Biden.
2. Na Europa, o enfraquecimento irreversível da União Europeia, depois do Brexit e da aposentadoria de Angela Merkel.
3. Na Ucrânia, um sistema político tão esgarçado que abriu espaço para a eleição de um humorista de TV.
4. No multilateralismo, uma organização (a OTAN) atrás de um função.
Em cima desse cenário, avaliou as consequências maiores da guerra, das represálias e definiu estratégias de resistência. Consumada a invasão da Ucrânia, quando o elemento guerra entrou, todo o quadro anterior se desfez:
1. Biden viu na guerra contra a Rússia a oportunidade de recuperar a popularidade e a liderança sobre um país dividido. E radicalizou..
2. A Alemanha viu na guerra a grande oportunidade para o fortalecimento da União Europeia. E radicalizou.
3. O apoio externo fortaleceu o presidente da Ucrânia e a resistência aos russos.
Ou seja, a guerra tornou-se bóia de salvação para todos os atores iniciais, mudando radicalmente o cenário anterior.
Seguiram-se represálias inimagináveis em um mundo minimamente racional, com retaliações econômicas inéditas contra a Rússia que afetam a economia mundial como um todo; gritos de guerra partindo dos porta-vozes da diplomacia europeia; e a opinião pública internacional sendo manobrada por informações unilaterais com o discurso em uníssono pela guerra.
Se alguém tenta incutir um mínimo de racionalidade na discussão, é submetido ao imbecil coletivo da mídia – a multidão de analistas que pretende refletir a voz das ruas, condenando qualquer forma de negociação, mesmo sabendo que o alvo é um país com o maior arsenal atômico do planeta.
Peça 3 – a teoria do choque e o caso brasileiro
Em setembro de 2016, no auge do golpe do impeachment, publiquei o artigo “Xadrez da Teoria do Choque e do Capitalismo de desastre”, tentando juntar as peças para entender o comportamento político nacional.
“Há um conjunto de peças soltas no golpe que, quando devidamente organizadas, permitem entender de modo muito mais claro um dos aspectos mais relevantes: a influência externa.
São elas:
1. A campanha sistemática da mídia de destruição da autoestima nacional.
2. Recém instalado o golpe, a corrida do ouro entre Eduardo Cunha e José Serra, para ver quem se antecipava na aprovação da nova legislação do petróleo.
3. A ida repentina do senador Aloysio Nunes aos Estados Unidos, para conversar com membros do Senado.
4. Antes dele, a ida do Procurador Geral da República aos Estados Unidos, para reuniões com o Departamento de Justiça e outros setores sensíveis.
5. A bandeira mágica que acompanha o golpe, de colocar a salvação do Brasil no trinômio reforma da Previdência-livre fluxo de capital-desregulação/privatização.
Para juntar as peças acima, vale a pena um mergulho no livro “A Doutrina do Choque” da norte-americana Naomi Klein”.
O livro analisa situações políticas de choque – desastres naturais, golpes de Estado, que produzem uma desorganização institucional no país, permitindo grandes negócios com bens públicos até que se retome a normalidade institucional.
O caso mais emblemático é o da União Soviética. A crise política produzida pela Glasnost permitiu um pacto entre a elite política do Partido Comunista e da KGB que resultou na apropriação do poderoso aparato industrial soviético pelos antigos chefes políticos. O poder na Rússia acabou nas mãos de um autocrata apoiado por oligarcas beneficiados pelo desmonte do país.
No Brasil, à medida em que o impeachment se desenhava, houve uma revoada de lobistas para Brasília, prevendo a abertura de mais um grande período de negócios. O desmonte notório do estado brasileiro esconde negócios nos mais variados campos, desde a venda de subsidiárias da Petrobras, negócios com remédios, até o desmonte da produção de uréia pela Petrobras, para beneficiar indústrias nas áreas de potássio, fósforo e nitrogênio.
Peça 4 – o novo poder militar
O fato novo na história não são os 8 mil militares que passaram a ocupar cargos civis, mas a montagem de um complexo militar-miliciano debaixo do guarda-chuva do bolsonarismo.
Em “Xadrez da Tarcísio, o super-ministro de Bolsonaro, e os negócios do poder militar”, mostramos a entrada de empresas ligadas a militares na área de transporte, a partir da nomeação de militares para o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura Terrestre), ainda no governo Dilma Rousseff.
Em “Xadrez de como Braga Netto tentou a operação Davati quando interventor no Rio”, mostramos os negócios articulados por ele, quando interventor no Rio de Janeiro, com empresas ligadas a mercenários, com os quais teve contato no Haiti.
Em “Xadrez do Partido Militar e dos militares bolsonaristas”, mostramos a blindagem das Forças Armadas a malfeitos praticados por empresas ligados a militares da reserva.
Em “Xadrez do alto comando sem espinha dorsal”, relacionamos uma lista de escândalos ligados a militares, sem apuração por parte do Alto Comando.
Em “Xadrez para entender a história do cabo das vacinas”, mostramos a razão de um cabo da PM ter encontrado portas abertas no Ministério da Saúde e os vínculos com reverendos e militares da reserva, que foram um ecossistema global.
Aqui, um levantamento das matérias sobre o reverendo Amilton Gomes, com ligações com a família Bolsonaro, e suas vinculações internacionais.
Essas aventuras empresariais mostram que grupos militares já aprenderam o caminho dos negócios do Estado, inicialmente em operações menores e malcheirosas. Mas, certamente, caminham para se tornar participantes ativos de um jogo cujo maior beneficiário, até agora, é o capital financeiro.
É mais um ponto a se considerar em relação às eleições de 2022.
Peça 5 – as eleições e o golpe
A Peça 4 reforça a ideia de que os atuais vitoriosos não abrirão mão passivamente dos pedaços de poder proporcionados pelo bolsonarismo.
A senha já está dada:
A senha já está dada:
1) Em caso de vitória de Lula, por margem apertada, retornarão as denúncias sobre manipulação das urnas eleitorais.
2) Paralelamente, haverá a convocação de manifestações nos principais centros do país, especialmente na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.
3) Se tentará reeditar o golpe de 7 de setembro. E qual será o comportamento das Forças Armadas?
No fundo, essa é a questão crucial. Do lado de fora,, o crescente prestígio e atrevimento dos consultores militares; do lado de dentro dos quartéis, o discurso diuturno de um anticomunismo obsoleto.
Leve-se em conta que se trata de um país sem o menor apego às normas democráticas. A maneira como Ministros do Supremo Tribunal Federal endossaram os ataques à democracia é mais que revelador.
No já clássico “Como as democracias morrem”, os autores descrevem um dos processos mais insidiosos de destruição da democracia, o chamado “jogo duro institucional”, no qual jogam-se segundo as regras, mas levando-as aos seus limites. “Trata-se de uma forma de combate institucional cujo objetivo é derrotar permanentemente os rivais partidários – e não se preocupar em saber se o jogo democrático vai continuar”. É a descrição perfeita do arco político montado na Lava Jato, Sérgio Moro –> TRF 4 –> Felix Fischer (STJ) –> Luis Roberto Barroso/Luis Edson Fachin (STF), que já entrou para a história como o responsável maior pela desagregação democrática do país.
Pergunto: repetindo as mesmas circunstâncias, fariam de forma diferente, com as informações hoje disponíveis? A mídia, que aparentemente acordou com a Vaza Jato, estaria disposta a uma autocrítica, de não mais repetir processos desestabilizadores da democracia?
Esse é o drama nacional: um país cujas principais instituições não consolidaram princípios democráticos. E, por trás de tudo, as ondas que vêm dos centros políticos internacionais, de que todo arbítrio será tolerado, e nenhuma negociação será aceita.