Os tupiniquins, aos poucos, recuperam o seu vocabulário, pronúncias e formas de escrita. Esse povo indígena teve o elo linguístico perdido em 1960, com a morte do último membro da tribo – uma anciã que conhecia sua língua original mas deixou de falar o “tupinakã” por temer represálias das autoridades juruás (brancas). Agora, professores indígenas especializados em linguística comandam a retomada do idioma, da cultura e da memória.
Esta reportagem, publicada pelo site oficial da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, é uma referência a esta segunda-feira, dia19 de abril — que para os povos originários é o Dia da Resistência dos Povos Indígenas — e reúne informações sobre a população indígena do Espírito Santo, suas diferenças, os problemas enfrentados atualmente e as ações de resistência e preservação de costumes e culturas.
Territórios
O litoral capixaba (e brasileiro) já foi quase todo povoado pela etnia tupiniquim. Aos poucos, após os europeus desembarcarem na costa Pindorama (região das palmeiras), os indígenas foram sendo desalojados para o interior do continente. Em 1943, Getúlio Vargas, por conselho de Marechal Rondon, instituiu 19 de abril como o “Dia do Índio”. Mas o indígena não a considera uma data de comemorações, pois o dia foi decidido pelo 1º Congresso Indigenista Interamericano, no México, em 1940, com outro sentido.
“O índio não tem nada que festejar a data de 19 de abril. O índio tem que comemorar todos os dias a resistência, o fato de ter resistido a toda perseguição, o fato de ter resistido a toda opressão, o fato de ter resistido às doenças que o colonizador trouxe para dizimar as populações indígenas. E estamos resistindo até hoje. O dia 19 de abril é o Dia da Resistência dos Povos Indígenas, é assim que nós reconhecemos o 19 de abril”, explica Paulo (Henrique de Oliveira) Tupiniquim – Pyatã, em tupi, que quer dizer “pés firmes”.
Dois povos no ES
Atualmente, os únicos povos com território demarcado no Espírito Santo pelo Governo federal são os tupiniquins e os guaranis, em três áreas (Caieiras Velha 2, Tupiniquim e Comboio) no município de Aracruz, ocupando pouco mais de 18 mil hectares. São cerca de 4 mil da etnia tupiniquim, distribuídos em seis aldeias: Areal, Caieiras Velha, Irajá, Pau Brasil, Comboios e Córrego do Ouro. Os tupiniquins foram aqueles que recepcionaram os portugueses à época do Descobrimento. Ocuparam o litoral brasileiro por milhares de anos.
A etnia guarani tem população aproximada de 600 indígenas, que formam cinco aldeias: Boa Esperança, Três Palmeiras, Piraquê-Açu, Olho D’Água e Nova Esperança Ka’aguy Porã. Vindos do Rio Grande do Sul, os guaranis migraram para o estado a partir de 1957, de acordo com o professor do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Julio Bentvoglio.
População
Há no Brasil, hoje, 488 terras indígenas regularizadas, o que corresponde a 12,2% do território brasileiro. Os estados do Sudeste têm 6% do total das terras demarcadas e regularizadas. No Espírito Santo, atualmente existem pouco mais de 11 mil indígenas considerando a projeção feita a partir do último censo do IBGE (2010).
Os povos indígenas que habitam o estado são tupiniquim, krenak (crenaque ou botocudo), guarani, coroado, puri, coropó, pataxó, maxacali, temiminó, etnias com denominações e realidades histórico-culturais particulares. “No estado, existem também pequenos agrupamentos de indígenas distribuídos. A gente poderia falar que há 11 denominações de povos”, esclarece Bentvoglio. Ele coordena a série “História dos Povos Indígenas no Espírito Santo”, da Coleção Canaã, editada pelo Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES), que já publicou livros sobre os povos puri, tupiniquim, guarani e krenak.
O professor também menciona grupos organizados de indígenas que reivindicam territórios como os tupiniquins de Anchieta e o povo krenak (botocudos) na região de Linhares. Bentvoglio nota que a denominação de botocudo se popularizou no final do século 18 e começo do século 19. Trata-se de termo pejorativo dado pelos brancos para se referir ao povo que usava botoque (adereços nos lábios e orelhas). Os próprios indígenas se autodenominavam boru. O Império do Brasil declarou guerra à etnia em 1808.
Botocudos
“Em relação à resistência indígena, talvez tenham sido os krenak (botocudos) que mais resistiram. E estão resistindo ainda hoje. É uma população que, claro, miscigenou, teve muito contato com os brancos, mas temos ali uma cultura muito antiga. Podemos associar a esse grupo macro-jê (tronco linguístico; os outros troncos são o tupi e o karib) a um povoamento que remonta à pré-história capixaba, 6 mil a 8 mil a.C.”, afirma o professor da Ufes.
A desocupação forçada que vitimou os indígenas passou por várias etapas, incluindo a prática do escambo (troca natural de mercadorias) e a escravidão. Mas há dois marcos históricos importantes na desocupação. O primeiro é a Guerra Justa, empreendida pelo príncipe regente Dom João VI, com a Carta Régia de 13 de maio de 1808, que legalizou o extermínio, afetando diretamente os botocudos na Bacia do Rio Doce.
Terras indígenas
O segundo momento é em 1850, quando o governo do Império do Brasil instituiu a Lei das Terras, considerando terras devolutas (entenda-se terras indígenas) aquelas não utilizadas para a agropecuária. Os indígenas não eram agricultores, tampouco pecuaristas. Em resumo, os juruás (brancos) conquistaram, do ponto de vista militar, político e econômico, as terras dos povos originários. Os indígenas foram obrigados a desocupar seus territórios à força. Nos tempos atuais, o caminho é inverso: os indígenas querem retomar parte de suas terras.
Mas nem sempre foi assim em todos os recantos do país. Há o caso de Vila Nova Almeida e Benevente (Anchieta) até a metade do século 18. Depois da expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1759, pelo marquês de Pombal, a política da Metrópole portuguesa foi a de controlar os indígenas pela distribuição dos poderes e pela miscigenação. Assim, a Vila de Nova Almeida chegou a ter uma Câmara de “índios puros” – todos os vereadores e juízes eram indígenas e o capitão-mor era um “índio velho”.
Mistura biológica
De acordo com a historiadora da Ufes Vânia Maria Losada Moreira, no livro “Espírito Santo Indígena”, publicado pelo APEES, “a mistura biológica e cultural entre índios e não índios foi uma das principais intenções da política pombalina”, responsável por expulsar os jesuítas do Brasil e transformar antigas missões em vilas e povoados.
“A última indígena que ainda falava a língua tupi (tupinakã) aqui no Espírito Santo faleceu em 1960 e não repassou para ninguém o conhecimento que ela tinha. O povo, sem sua língua materna, acaba perdendo parte de sua identidade. Os tupiniquim foram obrigados a deixar de falar sua língua, por conta da repressão do colonizador”, relata Paulo Tupiniquim.
Resgate da língua
“A língua tupi foi alvo de muitos registros, principalmente pelos jesuítas. Os tupiniquim tiveram a iniciativa de buscar esses relatos, esses escritos. Um professor da USP (Eduardo Navarro da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo) veio aqui e repassou esse conhecimento. Fez esse resgate da língua com os indígenas. Hoje, temos dois professores indígenas em idioma tupi”, conta.
Projeto desenvolvido pela antropóloga Aline Moschen, doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) incentiva o indígena a se reinserir na sua forma de se relacionar com sua própria imagem, o que, para ela, vai além de um fotograma estático no espaço e no tempo. Trata-se do Língua Viva, um projeto audiovisual com os indígenas de Aracruz.
“Sei que o projeto é insuficiente para o tamanho do problema, que é a tentativa de revitalização da língua. Não posso afirmar que esse projeto vai garantir isso, não vai, mas tem o intuito de dar visibilidade ao tema, aos agentes indígenas que tenham essa vontade”, comenta a pesquisadora.
Faz parte do trabalho realizado com os indígenas a criação de uma galeria virtual e de um podcast com conteúdo sobre a temática apresentado por especialistas. O projeto será adotado por algumas escolas públicas do estado por meio de convênio com a Secretaria de Estado de Educação, informa a antropóloga.
Aline Moschen observa a relação entre arte verbal, visual, língua e memória. “Destacar essa relação entre artes visuais e artes verbais é porque existe uma estratégia indígena em curso. Essa língua só foi extinta porque a própria existência no território foi apagada ou diminuída, a língua foi proibida.
Então, hoje, ter uma estratégia de visibilidade dessa existência é importante para que as outras coisas emerjam juntas. É necessário demarcar uma presença no território, uma presença visual”. O projeto tem o indígena como protagonista e produtor. “Os artistas indígenas estão interessados em romper com narrativas indígenas sobre eles e estereótipos sobre o seu modo de vida. Os estereótipos ajudam a gente a perpetuar a negação dos direitos dessas pessoas”, disse Moschen.
Cacique
O cacique da aldeia de etnia guarani Nova Esperança Ka’aguy Porã, Marcelo Guarani (Vera Djekupe ou Guardião dos Relâmpagos), explica uma característica dos povos guaranis (kaiowá, nhandeva, mbay e outros), que é a ideia da busca permanente de uma terra onde não há males, mas não exatamente o paraíso cristão, pois a crença é muito mais antiga.
“Muito antes de a minha bisavó fazer a caminhada dela com o meu bisavô e seus clãs, eles tiveram uma revelação de que existia um lugar e que pudessem vir com segurança que encontrariam esse lugar e que poderia ter esse lugar sem precisar de guerra”, conta o cacique guarani.
Até hoje, o povo guarani tem essa esperança de ir para a terra sem males. “Mas só que, para ir para essa terra sem males, a pessoa tem que se preparar bem nesse plano. Não comer qualquer tipo de coisa que vai prejudicar o corpo, não falar coisas que façam mal ao próprio espírito. Ser bom, ser harmonioso consigo mesmo, com as pessoas, com a natureza, com a vida”, explica.
Marcelo Guarani, o Guardião dos Relâmpagos, revela que “a terra sem males pode estar a milímetros do nosso nariz. Você pode, de repente, se está bem preparado para ir para essa Terra sem Males, pode desaparecer de repente. É um tipo de arrebatamento. Não é exatamente a morte. Até na vida pode acontecer isso”, garante.
Respeito à natureza
O cacique explica o respeito à natureza; quando eles vão entrar na mata, por exemplo, há toda uma reverência. “A gente pede permissão para que os guardiões da floresta nos protejam dos maus, dos perigos da floresta. É uma forma de respeitar Nhanderu (Deus), porque quem fez a floresta e os rios foi Nhanderu”, argumenta.
O ensino nas aldeias de Aracruz tem direção e professores indígenas, com projeto político pedagógico próprio. O ensino fundamental tem 550 alunos. Em 2014 foi criada e inaugurada a unidade para o ensino médio, mas o governo do estado não avançou no projeto. Ela só foi reinaugurada em 2019, no governo de Renato Casagrande (PSB). Tem cerca de 150 alunos.
Paulo Tupiniquim relata as dificuldades que os alunos enfrentam com a pandemia desde o ano passado, obrigados ao ensino a distância. “Nem todos têm condições de ter uma internet de qualidade dentro de casa, nem todos têm condições de ter um computador. Isso tudo torna difícil de se fazer o acompanhamento de fato das aulas de forma virtual. Então a importância do governo do estado e do município, que possam tomar providências e que os alunos tenham condições para fazer aulas virtuais”, reivindica.
Pandemia
Com relação à pandemia, Paulo Tupiniquim afirma que houve pouco apoio dos governos. As primeiras medidas sanitárias foram por iniciativa das lideranças junto ao movimento indígena nacional. “Todo equipamento individual, material de higiene, barreira sanitária no período de um mês no território, foi articulação das lideranças para garantir a segurança dos profissionais de saúde e da população”, pontua.
Segundo ele, o governo só entrou a partir das provocações das lideranças. “O secretário de Saúde ajudou com equipamentos de segurança, álcool gel. E articulamos junto à Secretaria de Direitos Humanos a doação de cestas básicas. Muitas aldeias não estão podendo sair para comercializar seus produtos, muitos sobrevivem da pesca, agricultura”, relata.
Crime ambiental da Samarco
O rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana (MG), ocorrido em 2015, provocou não só o desastre ambiental no Rio Doce, com a morte de diversas espécies marinhas, mas também afetou o principal manancial que ganha as aldeias: Piraquê-Açu, cuja foz está a 60 km ao sul da foz do Rio Doce.
“Minha vida mudou. Não sou um cara muito feliz, de olhar pra praia, de querer botar o pé na beira da água ou então levar meu filho e ensinar ele a pescar. Às vezes, a gente tem receio se for caçar. Porque tem animal que vai no mangue comer um caranguejo, comer um peixe e vai pra floresta de novo. A gente tem receio de matar uma capivara pra gente comer”, diz Marcelo Guarani.
O cacique guarani faz críticas à Fundação Renova e diz que a instituição não queria sequer pagar o auxílio emergencial, alegando que só a parte norte da foz do Rio Doce foi afetada. “Uma grande mentira. Eles mesmos contrataram uma empresa chamada Polifônica e ela foi lá, junto com alguns índios, e apontou 47 problemas seríssimos. Na análise dos animais que foram pegos, aquáticos, tudo indicou que os indígenas foram afetados”, afirma.
Conforme disse Marcelo Guarani, a comunidade indígena de Aracruz foi, sim, bastante afetada pelo desastre ambiental e exige mais do que o auxílio emergencial: “Paramos de vender artesanato. Não tem como vender caranguejo, não tem como vender peixe, não tem como fazer mais nada. A gente pede que eles nos indenizem pelos danos morais, culturais e tudo”, defende. Marcelo informa que a Comissão dos Caciques já apresentou, com base em pesquisas científicas, relatório à Fundação Renova exigindo indenização.