De acordo com o documento, PL 5.167/2009 representa um retrocesso, pois suprime direitos de pessoas LGBTQIA+ e contraria princípios constitucionais. “A imposição de um viés religioso geral a escolhas particulares nos leva em direção a uma teocracia ou a totalitarismos, nos fazendo retroceder alguns séculos no tempo”, diz o MPF
Em nota pública enviada nessa sexta-feira (22) à Câmara dos Deputados, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público Federal (MPF), pede a rejeição e o arquivamento do projeto de lei (PL) em trâmite na Câmara dos Deputados que tem por objetivo proibir a união civil homoafetiva no Brasil. De acordo com a PFDC, além de inconstitucional, a proposta afronta princípios internacionais e representa retrocesso no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais das pessoas LGBTQIA+.
O PL 5.167/2009 está em discussão na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados (CPASF). A proposta prevê que a relação entre pessoas do mesmo sexo não pode ser equiparada ao casamento ou à entidade familiar, prevista na Constituição Federal como união entre homem e mulher. No final de agosto, o relator da matéria na CPASF, deputado federal Pastor Eurico (PL-PE), apresentou parecer favorável à aprovação do projeto, sob o argumento de que a união homoafetiva não representaria a vontade expressa pelo constituinte.
Para a PFDC, no entanto, negar a possibilidade de união civil homoafetiva significa dizer que os homossexuais teriam menos direitos que os heterossexuais, criando uma hierarquia de seres humanos com base na orientação sexual. Esse entendimento contraria preceitos constitucionais, como o da dignidade da pessoal humana e a proibição de qualquer forma de discriminação. “Uma eventual aprovação desse projeto não significa apenas o Estado assumir que existe um modelo correto de casamento e que este modelo seria o heterossexual. Significa também dizer que o Estado reconhece as pessoas não heteronormativas como cidadãs e cidadãos de segunda classe, que não podem exercitar todos os seus direitos, em função de sua orientação sexual”, afirma o órgão no documento enviado à presidência da Câmara dos Deputados, à CPASF e ao relator do projeto.
Além disso, a nota pública lembra que em 2011 o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou a união estável homoafetiva àquela entre homem e mulher, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277, para fins de acesso a direitos civis como herança, compartilhamento de planos de saúde, pensão, entre outros. Na avaliação da PFDC, a decisão representou um avanço significativo à proteção dos direitos civis de minorias LGBTQIA+ no Brasil. O órgão lembra que a Constituição proíbe o retrocesso na conquista de direitos e alerta que a eventual aprovação do PL 5.167/2009 comprometeria avanços consolidados no Brasil há 12 anos, os quais servem inclusive de modelo para outros países.
A PFDC também rebate o argumento do relator do PL de que o STF, ao validar a união homoafetiva, teria usurpado a competência reservada ao Legislativo de regulamentar o tema. Segundo o órgão, a Suprema Corte exerceu sua competência interpretativa do direito, ao firmar entendimento de que a citação expressa a homem e mulher na Constituição de 1988 decorreu da necessidade de se explicitar o patamar de igualdade de direitos entre as partes do casal.
Prejuízos – De acordo com a nota da PFDC, o PL visa suprimir direitos de pessoas homossexuais, invisibilizá-las e impossibilitá-las de exercer todos os aspectos da vida civil. Segundo dados do IBGE, apenas em 2021, 9,2 mil casais de mesmo sexo formalizaram sua união estável em cartório. Caso o projeto se torne lei, o órgão do MPF alerta que novas uniões estarão vedadas ou não surtirão os efeitos legais desejados, “criando evidente e injustificado desequilíbrio entre pessoas homo e heterossexuais”.
Ainda de acordo com a nota, a união civil é um ato voluntário e privado, cuja essência é concretizar uma parceria entre duas pessoas para uma vida em comum. Nesse sentido, pouco importa a orientação sexual de quem está se unindo, e isso não diz respeito a toda coletividade em um Estado democrático que garanta as liberdades fundamentais. Na avaliação da PFDC, o projeto tenta cercear o direito de escolha dos indivíduos, em situação que se refere eminentemente à esfera privada.
Segundo a nota, o projeto de lei também relativiza a laicidade do Estado brasileiro, ao se basear em argumentos fundados numa visão cristã do casamento, tido como instituição voltada à geração de descendentes. “A imposição de um viés religioso geral a escolhas particulares nos leva em direção a uma teocracia ou a totalitarismos, nos fazendo retroceder alguns séculos no tempo”, pontua o documento. O órgão lembra, ainda, que o direito à união civil homoafetiva não afeta o direito de pessoas heterossexuais, visto que não obriga qualquer pessoa a se casar com outra do mesmo gênero.
Íntegra da nota pública
“NOTA PÚBLICA Nº 5/2023/PFDC/MPF
Assunto: Votação de proposição legislativa que veda a união matrimonial homoafetiva. Projetos de Lei nº 580/2007 e nº 5.167/2009. Retrocesso de direitos. Inconstitucionalidade.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público brasileiro comprometido com a defesa da ordem democrática, do estado de direito e dos direitos e garantias fundamentais, vem a público posicionar-se sobre as votações dos Projetos de Lei nº 580/2007 e nº 5.167/2009, os quais tratam da legalidade da união civil homoafetiva.
O PL 580/2007 se encontra na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados (CPASF). A ele foram apensados outros oito projetos de lei sobre a mesma temática. O relator da matéria na CPASF apresentou parecer ao projeto de lei (PRL nº 1 CPASF, PL 580/2007) em agosto de 2023, propondo a rejeição de oito das nove proposições em análise. Seu voto, ainda a ser apreciado por aquela Comissão, manifesta-se pela aprovação de uma das matérias apensadas, o PL 5.167/2009, cujo objetivo consiste em vedar a união civil homoafetiva.
.Ante a anunciada realização de uma audiência pública sobre o tema, e a iminência da votação da matéria na CPASF, esta Procuradoria manifesta sua posição contrária à aprovação do substitutivo proposto pelo relator. E há várias razões a sustentar o posicionamento da PFDC.
Cabe destacar que o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou, em maio de 2011, a união estável homoafetiva àquela entre homem e mulher, definindo que um casal homossexual também é apto a constituir família. Esse entendimento foi expresso no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277ii e trouxe avanço significativo à proteção dos direitos civis de minorias LGBTQIA+ no Brasil.
A decisão do STF tratou de assegurar a equidade de tratamento entre casais hétero e homoafetivos. Permitiu a cônjuges homossexuais o estabelecimento de união civil por meio de contrato reconhecido pelo Estado, garantindo-lhes direitos como herança, compartilhamento de planos de saúde, direitos previdenciários e outros, já reconhecidos aos consortes heterossexuais.
Segundo o entendimento consolidado do Supremo, o direito à orientação sexual deriva do princípio da dignidade da pessoa humana, e a expressão da sexualidade, inclusive para fins civis, é assegurada a partir do direito à intimidade e privacidade inscritos em nossa Constituição.
Todos esses avanços estão consolidados no Brasil há 12 anos, e também vêm servindo de modelo para outros países.
O resgate do substitutivo (PL 5.167/2009) propõe um retrocesso nesse contexto. Há que se garantir o princípio constitucional implícito da vedação ao retrocesso, diante de maiorias eventuais que pretendam suprimir direitos de minorias. O que o referido Projeto propugna é impedir que casais de fato não o possam ser de direito; é hierarquizar seres humanos com base em sua orientação sexual. Negar a união civil homoafetiva é gritar que os casais homossexuais teriam menos direitos do que os heterossexuais. Ora, não é esse o espírito da Constituição Federal de 1988.
Nossa Carta da República tem por fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e por objetivo fundamental a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). Ela também estabelece que todos são iguais perante a lei (art. 5º, caput), e consagra que a intimidade e a vida privada são direitos invioláveis (art. 5º, X).
Essas disposições constitucionais deveriam ser suficientes para deixar claro que uma união civil é um ato voluntário e privado, cuja essência é concretizar uma parceria entre duas pessoas para uma vida em comum. Nesse sentido, pouco importa a orientação sexual de quem está se unindo, e isso não diz respeito a toda coletividade, em um Estado democrático que garanta as liberdades fundamentais, em especial as dos indivíduos.
Em seu parecer, o deputado relator na CPASF contesta o entendimento do STF na ADI nº 4.277, em uma atitude que desborda de uma prática institucional e republicana, que deve guiar o relacionamento entre poderes.
Na opinião daquele parlamentar, a Constituição brasileira, no art. 226, define apenas a união estável entre homem e mulher como entidade familiariv. E, nesse sentido, o Supremo teria usurpado de seu poder, ao validar a união homoafetiva, matéria que seria reservada ao Legislativo Federal.
O parlamentar então justifica sua proposta com a dupla finalidade de sanar o excesso do STF e devolver o tema ao contexto existente há 12 anos.
Deve-se atentar, no debate em questão, que o direito não se compõe exclusivamente da literalidade da lei impressa. Pesam, na sua aplicação, princípios, jurisprudência, doutrina e interpretação.
O STF, em sua função jurisdicional, interpretou o art. 226 da Constituição Federal, ressaltando que a citação expressa a homem e mulher na união civil decorreu da necessidade de se explicitar a horizontalidade da relação entre as partes do casal. No contexto da década de 80 do século passado, era fundamental explicitar que não deveria haver hierarquia entre os cônjuges, sem implicar a exclusão de outros arranjos familiares.
.Não há, portanto, usurpação de poder por nossa Corte Constitucional. Há, sim, o exercício regular de sua competência interpretativa do direito.
Já o PL 5.167/2009, cuja aprovação é pedida pelo relator da matéria, deseja negar um fato: pessoas de mesmo sexo se unem para estabelecer núcleo familiar. Em 2021, segundo o IBGE, 9.202 casais de mesmo sexo formalizaram sua união em cartório. Caso o projeto se torne lei, novas uniões estarão vedadas ou não surtirão os efeitos legais desejados, criando evidente e injustificado desequilíbrio entre pessoas homo e heterossexuais. O PL de 2009 visa suprimir direitos dessas pessoas, invisibilizá-las, impossibilitá-las de exercer todos os aspectos da vida civil.
Em sua justificativa, o PL 5.167/2009 chega relativizar a laicidade do Estado brasileiro, ao aludir aos efeitos civis do casamento religiosovii. Esse argumento não se sustenta do ponto de vista estrutural de nossa Constituição.
O art. 19 de nossa Lei Maior estipula:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou
manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da
lei, a colaboração de interesse público;
(…)
III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
Ao impedir a criação de vínculos do Estado com qualquer corrente religiosa, nossa Constituição teve o claro objetivo de viabilizar a igualdade entre todas as pessoas, independentemente de sua fé. O poder público deve ser guiado por parâmetros que busquem equalizar os seres humanos, salvo em situações especiais, garantindo o bem de todos, na forma do já citado art. 3º da Carta Magna.
No desenrolar da justificação do PL 5.167/2009, apresentam-se argumentos fundados numa visão cristã de casamento. Trata-se de impor à sociedade um viés de união civil que representa apenas uma parcela de nossa população. Mais grave ainda é o fato de cercear o direito de escolha dos indivíduos, em situação que se refere eminentemente à esfera privada.
Um dos argumentos mais brandidos pelos defensores da vedação ao casamento homoafetivo diz respeito à procriação. Para essas pessoas, o matrimônio válido é aquele voltado à geração de descendentes.
O que dizer então dos casais heterossexuais impossibilitados de ter filhos? Por essa régua, eles deveriam se abster de contrair núpcias? E os casais heterossexuais fora da idade reprodutiva? Deveriam também jamais voltar a se casar, por impossibilidade reprodutiva? Essas hipóteses sequer são formuladas por quem usa o critério reprodutivo como validador do casamento, e certamente ninguém impedirá pessoas estéreis ou idosas de formalizar uma união civil.
Em outra vertente, imagine-se um casal homossexual que não tenha parentes e esteja impedido de firmar uma união civil. Se uma das partes adoece, a ponto de não poder decidir sobre o próprio tratamento médico, o que a outra pessoa poderá fazer? Ela legalmente não faz parte da família de quem está enfermo, ainda que na realidade o seja. Sem vínculo familiar, como essa pessoa poderá colaborar no cuidado? Como poderá autorizar ou negar uma abordagem terapêutica daquele ente querido que se encontra incapaz de decidir?
O que dizer também dos casos em que uma das partes de um casal homoafetivo falece, sem que haja união civil formalizada? A viúva ou o viúvo fica impedida(o) de solicitar pensão por morte, pois não tem reconhecido seu papel de cônjuge.
São esses tipos de direitos que o PL 5.167/2009 irá negar. Não se trata, portanto, de um capricho, um detalhe, uma abstração legal ou religiosa.
Uma eventual aprovação desse projeto não significa apenas o Estado assumir que existe um modelo correto de casamento e que este modelo seria o heterossexual. Significa também dizer que o Estado reconhece as pessoas não heteronormativas como cidadãs e cidadãos de segunda classe, que não podem exercitar todos os seus direitos, em função de sua orientação sexual. Essa ideia colide frontalmente com a essência da Constituição da República Federativa do Brasil, a qual busca estruturar uma nação em que a convivência entre os diferentes seja pacífica e harmônica.
Diante desse cenário, parece clara a inconstitucionalidade material do projeto apoiado pelo relator da CPASF. Caso venha a se tornar lei, tal proposta será certamente questionada perante o STF e, muito provavelmente, perderá sua eficácia no futuro. Contudo, até a conclusão desses trâmites, os casais homoafetivos que desejem formalizar sua união restarão prejudicados.
No início deste ano, o parlamentar espanhol Gabriel Rufián, em um discurso na Câmara Legislativa daquele país, afirmou que “os direitos não obrigam”, isto é, ninguém é obrigado a exercitar um direitoix. Assim, o direito à união civil homoafetiva não obriga qualquer pessoa a se casar com outra de mesmo gênero. O direito ao casamento homossexual, portanto, não afeta em nada a existência e o exercício de direitos de pessoas heterossexuais que desejem estreitar os laços do matrimônio.
Um dos maiores sinais de civilidade em uma nação é coexistência de pessoas como são e se apresentam para a sociedade. Isso inclui poder celebrar sua fé, seu pensamento e sua sexualidade. Inclui também poder unir-se a quem bem entendam, buscando a felicidade na vida privada. A imposição de um viés religioso geral a escolhas particulares nos leva em direção a uma teocracia ou a totalitarismos, nos fazendo retroceder alguns séculos no tempo.
Ainda que o Brasil tenha um povo majoritariamente cristão, o país também é formado por pessoas de fé de matriz africana, judaica, muçulmana, budista e tantas outras. É formado igualmente por pessoas que não professam fé alguma. Todas elas têm direito a existir pacificamente em suas crenças (ou na ausência delas).
Da mesma forma, ainda que este país seja majoritariamente cisheteronormativo, parcela de sua população é composta por pessoas LGBTQIA+, que merecem o direito a um existir digno, especialmente se desejam constituir família. Por tudo isso, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão posiciona-se publicamente pela rejeição/ arquivamento do substitutivo ao Projeto de Lei nº 580/2007 pautado na CPASF (que recomenda a aprovação do Projeto de Lei nº 5.167/2009), dada a inconstitucionalidade material da proposição, a sua incompatibilidade com os Princípios internacionais de Yogyakarta de 2006, e o retrocesso de direitos trazido pelo Projeto. A PFDC reitera, outrossim, o seu compromisso com a defesa e a promoção de direitos humanos no contexto brasileiro, com a defesa de minorias e de vulneráveis, com os princípios constitucionais, com a democracia e a participação efetiva dos segmentos interessados no debate; exortando todos os parlamentares e a sociedade civil e se somarem a esse posicionamento.“
Carlos Alberto Vilhena
Subprocurador-Geral da República Procurador Federal dos Direitos do Cidadão
Lucas Costa Almeida Dias
Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no Acre
Coordenador do Grupo de Trabalho (GT) “População LGBTQIA+: proteção de Direitos”
André Luiz de Araújo
Promotor de Justiça no Paraná
Membro do GT
Anna Catharina Machado Normanton
Promotora de Justiça em Minas Gerais
Membra do GT
Anna Trotta Yaryd
Promotora de Justiça em São Paulo
Membra do GT
Luan de Moraes Melo
Promotor de Justiça em Santa Catarina
Membro do GT
Murilo Hamati Gonçalves
Promotor de Justiça em Mato Grosso do Sul
Membro do GT
Patrícia de Amorim Rêgo
Procuradora de Justiça no Acre
Membra do GT
Nathália Mariel Ferreira de Souza
Procuradora da República no Pará
Membra do GT
Paulo Roberto Sampaio Anchieta Santiago
Procurador da República em São Paulo
Membro do GT
Paulo Gilberto Cogo Leivas
Procurador Regional da República na 4ª Região
Membro do GT
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